FESTA 57 - Entrevistas e críticas

INTRODUÇÃO

Bem-aventurança do fazer teatral

Feliz é quem sabe que não há maior verdade acima do teatro. Seja o teatro no palco, seja na praça ou na chuva. Até pode soar contraditório que a arte da representação seja mais verdade do que aquilo que é representado, mas todo bom filósofo e gente sã precisa concordar que a verdade única e inatingível é com um prisma de lados fragmentados em instantes e olhares que não se repetem.

Não seria a cada sessão que o teatro se manifesta como o puro jogo de verdade entre artistas e público? Não seria esta mesma verdade criada no calor das expressões a instigar horas, meses e anos da plateia que reflete e coleciona entre as suas memórias aquelas cenas inesquecíveis, aquelas interpretações ou aqueles ambientes em torno da peça?

Não seria esta mesma verdade recriada a cada sessão que os atores, diretores, dramaturgos, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, técnicos de som e de luz e outros tantos não instigam horas, meses e anos para compor cada detalhe? E em cada detalhe do espetáculo, lá não estará a verdade dedicada e delicada de cada um deles como facetas deste prisma maior?

Não seria o teatro a verdade do coletivo, a verdade social, a verdade completa? A verdade que se manifesta não só na representação de um mundo, mas na manifestação dela mesma enquanto a arte que aglutina outra artes - a dança, as artes visuais e plásticas, a música, o circo, a literatura e o cinema. Justamente por ser tão verossímil, que este ofício pode e deve desenvolver diferentes perspectivas.

Durante o FESTA 57 - Festival Santista de Teatro, espetáculos mostraram gratuitamente as suas verdades durante os primeiros nove dias de setembro de 2015 em dez espaços públicos de Santos e, por sua vez, críticos analisaram as peças num diário de circulação regional. Nesta publicação, reunimos tanto as entrevistas com membros das companhias teatrais, quanto às críticas sobre os seus trabalhos, a fim de guardar como memória em nossa Cidade o fazer do teatro, ou melhor, o fazer da verdade.

Lincoln Spada

ABERTURA

‘De Volta ao Centro’, da Caravana Tonteria

O FESTA 57 apresentou o espetáculo ‘De Volta ao Centro’ gratuitamente no dia 1º de setembro, às 20 horas, no teatro do Sesc Santos. O espetáculo é da Caravana Tonteria, formada por Letícia Sabatella (composições e voz), Paulo Braga (piano), Fernando Alves Pinto (serrote, trompete, violão e voz) e Zéli Silva (contra-baixo).

Na montagem, ela apresenta um espetáculo musical com repertório que vai desde canções autorais a obras de grandes compositores como Chico Buarque, Kurt Weill, Duke Ellington e Colle Porter. Contando com músicos-atores, o show carrega um elemento dramático em suas interpretações, incluindo algumas pequenas cenas durante o espetáculo. O show traça também uma viagem de estilos que vão do jazz ao flamenco, do tango à rumba, com músicas que reforçam simbolicamente o ambiente de um cabaré itinerante, com a Caravana rodando pelo mundo e revelando em nuances as influências dos lugares por onde passam.

Letícia, quando você fala da ‘Caravana Tonteria’ e pela repercussão nas diferentes mídias, soa que este espetáculo contempla muito de uma Letícia Sabatella: une literatura, música, artes cênicas com uma liberdade desigual na concepção. Pode descrever qual foi o instante em que desejou compor este projeto e o quão de você está mesmo no palco durante os shows?

A Caravana, no momento, ainda existe como um show de música. Bem, eu e o Nando [Fernando Alves Pinto, seu marido] somos atores e assim nos apresentamos utilizando este recurso nosso. Às vezes, inserimos poesias e as cenas acontecem naturalmente. Estamos nos preparando para um espetáculo mais abrangente.

O seu lado intérprete musical já foi alardeado antes mesmo do lançamento da Caravana no ano passado. E, provavelmente, durante a escolha das músicas e ensaios, outras habilidades devem ter sido despertadas neste seu período. Olhando para trás, o que você aprendeu neste processo da ‘Caravana Tonteria’?

É um sonho se realizando, estar cantando músicas minhas e de autores que adoro, tão bem acompanhada! É uma realização!

Não à toa, o espetáculo ganha a repercussão na Internet quando você interpreta ‘Geni e o Zeppelin’. Nesta temporada, quais relatos, palavras de incentivo ou situações mais te marcaram? Pode destacar alguma destas ocasiões?

Estes convites que tem acontecido, esta aceitação e compreensão de um estilo teatral de interpretação, tudo tem sido um grande incentivo e faz com que eu mesma reconheça, que a partir deste reflexo das pessoas, o valor do que está florescendo. Semente sendo bem regada, broto sendo cuidado.

Este desejo das pessoas por nossa arte é o alimento pra crescer nosso trabalho, tocar nossa caravana. Ouvir de grandes mestres como o próprio Chico [Buarque], Elza Soares, Zélia Duncan, Zé Maurício Machline, Yuka, dos meus parceiros maravilhosos, que é especial, que tem uma diferença e que é bom mesmo, tem me convencido mais dessa potência. Vejo com menos dureza os meus defeitos.

Claro que a ‘Caravana’ não é só um filho da Letícia, mas também de seu marido Fernando e outros músicos. Como o ritmo destas parcerias influencia no seu trabalho? E já estão engajados em futuras produções?

Sim, a Caravana é um grande encontro, graças a Deus! É muito acalentada a qualidade musical e a sua peculiaridade. Vamos ter um diretor musical incrível, em breve, o Arrigo Barnabé, e aí temos planos de pegar a estrada com mais frequência.

Em ‘Eu Maior’, você citou a questão do esvaziamento do ego para conceber suas personagens, além de que a profissão permite esta aprendizagem contínua de descobertas e redescobertas. Como você define o ofício de ser ator? E qual a recomendação para quem queira viver nesta carreira?

Como disse Juliana Galdino, o ser atriz/ator “é fazer da crise poesia”. É mergulhar na loucura com o escafandro da arte! Uma permissão incrível e libertadora! Trabalhe, pesquise e mergulhe que a inspiração vem!

Por mais que recuse o rótulo de politizada, a sua imagem atualmente transmite de uma mulher atenta às questões ambientais e de cidadania. O quanto a sua carreira artística contribui para que você se identifique e concorde com estes temas sociais?

Tenho que ser “humana, demasiado humana”, pra conseguir ser uma grande atriz. Sou pequena se não me impregnar dessa matéria viva, das experiências!

Creio que por vezes você relaciona o seu ofício artístico – nos palcos ou nas telas – para provocar reflexões às pessoas, quase como uma responsabilidade social do artista. Em toda sua trajetória, pode citar algum personagem ou experiência que mais lhe marcou neste sentido?

Acho que produzir e dirigir o documentário ‘Hotxuá’ [lançado em 2012] foi a minha maior contrapartida social levando em conta o tema do ator, do palhaço.

É bom ressaltar que você tem formação desde o balé e até já experimentou a direção de filmes. Há alguma linguagem ou segmento que você ainda planeja explorar mais em sua carreira? Aliás, já tem planos de produções futuras?

Quero produzir [mais] trabalhos que tenho vontade de fazer, no cinema, no teatro, na música.

Este ano, o seu espetáculo é o de abertura do FESTA 57 – Festival Santista de Teatro, que tem como foco propor uma Lei Municipal de Fomento ao Teatro, como ocorre em São Paulo, para financiamento público na pesquisa permanente dos grupos cênicos e, ao mesmo tempo, oferecendo também maior acesso à população. Qual sua opinião sobre este programa na Capital?

Eu não moro em São Paulo, mas fico feliz sempre que assisto a peças, experimentações muito marcantes de grupos locais. Sempre uma pesquisa profunda, sempre uma proposta diferente e de muita qualidade, muita gente boa! Fomento a esses trabalhos são estímulos muito importantes, são oásis de transcendência em meio ao caos cotidiano de uma cidade como São Paulo.

Bem, não sei se tem alguma memória de Santos para partilhar conosco, mas como você quer lembrar a sua próxima passagem pela Cidade?

Acho que a última vez que fui a Santos, estive em uma aldeia. Bem, quero ter feito jus ao carinhoso convite da cidade para que nossa ‘Caravana’ fosse escolhida para abrir este festival e que haja uma boa discussão sobre o fomento à cultura!

MOSTRA NACIONAL

‘Baile do Anastácio’, do Grupo Oigalê

O espetáculo ‘Baile do Anastácio’, do Grupo Oigalê (Porto Alegre/RS) foi encenado no dia 5 de setembro, às 18 horas, na Fonte do Sapo. A dramaturgia é de Luis Alberto de Abreu e a direção é de Claudia Sachs. No elenco: Diana Manenti, Giancarlo Carlomagno, Hamilton Leite, Mariana Horlle, Paulo Brasil, Paulo Roberto Farias.

O foco central da narrativa de ‘O Baile do Anastácio’ é o desejo de Riograndino Anastácio e sua esposa Minuana que querem casar a filha, Maria Pampiana, e buscam um pretendente cujos dotes impulsionem os negócios da família. Parábola sobre a devastação ambiental e os jogos de interesses em torno da terra, a peça utiliza como metáfora o casamento arranjado que ignora o desejo da mulher. Um baile repleto de música, encontros, desencontros, peleias, danças e namoros, de forma divertida, dinâmica e bem humorada.

O bendito teatro popular brasileiro

Por Bruno Fracchia

A Oigalê Cooperativa de Artistas Teatrais trouxe ao FESTA57 seu trabalho desenvolvido em parceria com Luís Alberto de Abreu, que é, talvez, nosso maior autor de Teatro Popular. A consequência da associação entre um dramaturgo-pesquisador e uma companhia que viajou mais de 5 mil quilômetros durante 50 dias para as pesquisas para este projeto é uma obra segura de seus princípios e objetivos e que revela um grupo em maturidade artística.

Mesmo voltada para o público adulto (e, para escolas, para alunos de 7ª e 8ª séries do Ensino Médio), na apresentação ocorrida na Fonte do Sapo foi possível presenciar o envolvimento de crianças pequenas, encantadas com os figurinos e energia dos intérpretes. É a força do teatro popular! No gênero cômico está a principal tradição do teatro brasileiro, que tem como marco zero para muitos estudiosos a peça 'O Juiz de Paz na Roça', de Martins Pena, popular comediógrafo do século XIX e que reverbera nesta criação da companhia gaúcha. Com o grau de envolvimento de uma plateia bastante diversificada, os artistas da Oigalê mostram que tradições populares não necessariamente envelhecem. Elas precisam é de reoperacionalização para o diálogo com sua época.

A farsa criada por Abreu – e construída de forma colaborativa pelo grupo - conta a história de Riograndino Anastácio e sua mulher Minuana, que querem casar a filha, Maria Pampiana. Eles buscam um pretendente cujos dotes impulsionem os negócios da família. Com uma premissa dessas estruturada em tradições do teatro popular, contando com atuantes-criadores de excelência na estética do Teatro de Rua, seria impossível a criação de uma obra que, através da comédia, não dialogasse criticamente com sua época.

A peça é uma inteligente parábola farsesca na qual Pampiana simboliza o Rio Grande do Sul prestes a ser entregue por alguns dos atuais detentores do poder econômico (como os grupos ligados ao agronegócio). Contra esse esmagamento econômico que destrói os pequenos produtores agrícolas, a Oigalê se posiciona de forma muito firme. Política e esteticamente.

Os atores fazem um trabalho legitimamente de grupo, valendo destacar que os trabalhos corporal e musical de todos são sempre muito precisos, ágeis e envolventes. Por tudo isso, a afirmação de que a Oigalê é um grupo em bendita maturidade artística. E que presentou todo um público com um pouco de conhecimento da cultura gaúcha com uma obra que nos mostra a diferença entre Popular e popularesco. Muita estrada a estes bravos artistas!

Os inúmeros signos de ‘Baile do Anastácio’

Por Luiz Eduardo Frin

É uma alegria e, ao mesmo tempo, uma dificuldade escrever sobre a apresentação do espetáculo ‘Baile do Anastácio’ da Cia. Oigalê do Rio Grande do Sul, realizada na Fonte do Sapo no início da noite do último sábado dentro da programação do Festa 57.

A alegria é pela oportunidade de se referir a um espetáculo tão bem constituído e apresentado por intérpretes inspirados, conhecedores e preparados para o seu ofício.

A dificuldade reside na percepção que uma apreciação crítica não é capaz de abarcar e de racionalizar os inúmeros expedientes de uma realização artística, ainda mais quando eles foram tão bem articulados como na apresentação da Oigalé.

Com dramaturgia de Luís Alberto de Abreu, nome de referência na dramaturgia e na teoria teatral brasileiras da atualidade, o espetáculo apresenta a tentativa de Riograndino Anastácio e sua esposa Minuana de casar a sua filha Maria Pampiana e, com o casamento, impulsionar os negócios da família. Para isso, promovem uma grande festa: O Baile do Anastácio.

Tanto a dramaturgia de Abreu, quanto a encenação da Companhia, estão embasados em elementos da Cultura Popular Brasileira que se imbricam em expedientes da ancestral Commedia dell’arte.

Originada na Europa na transição da Idade Média para o Renascimento, a Commedia dell’arte, com suas personagens típicas (muitas vezes inspiradas em animais) e situações improvisadas a partir de um enredo proposto, apropriou-se de expedientes ancestrais do teatro popular, como o humor, a utilização prioritária de expedientes corporais dos interpretes (entre eles malabarismos e técnicas circenses), a música e a própria capacidade de improvisação para alcançar uma vigorosa relação com o público influenciar manifestações cênicas populares mundo afora.

Ao acompanhar uma encenação de precisão formal ímpar, com movimentos coreografados e executados com vigor pelos intérpretes que assumiam diferentes personagens representadas a partir de posturas corporais bem definidas, o público se deliciou com os estratagemas do criado da família (um verdadeiro Arlechim dos Pampas) que impediram que Maria Pampiana fosse obrigada a se casar com uma série de pretendentes gananciosos, interessados principalmente nas terras de Riograndino e Minuana.

As associações entre a saga da família com a questão latifundiária brasileira surgem claras e tanto o texto de Abreu, quanto a encenação de Oigalé, servem a realização de um teatro na qual elementos de cunho político estão claros e artisticamente expostos. Quem ganha é o público.

O que o nosso criado não conseguiu, foi realizar o seu desejo de se casar com Maria Pampiana, por quem era apaixonado. Heroína de nosso tempo, Pampiana termina a peça deixando a família para se casar com quem o seu coração mandar.

Cultura popular brasileira e história humanista: o teatro de artesania e filigranas

Por Simone Carleto

Com o texto 'O Baile dos Anastácio’, de autoria de um dos mais importantes trabalhadores-dramaturgos do teatro brasileiro, Luís Alberto de Abreu, a trupe Oigalê Teatro de Rua apresentou a perfeita parceria que legitima certamente uma das principais obras teatrais da atualidade, coerentemente construída a muitas mãos, apropriando-se formalmente de elementos propostos no texto. A preparação dos atores e atrizes, experientes na estrada do teatro de rua há 15 anos, contribui decisivamente para a harmonia entre proposição e execução do projeto artístico. Como temas predominantes da obra estão a questão da posse e exploração de terras, juntamente com o aniquilamento da cultura e história dos primeiros habitantes.

Obra de arte com diversas camadas de um delicado tecido, semelhante ao que se pode observar na cuidadosa confecção dos figurinos e adereços do espetáculo, traz para o centro da arena formada na orla marítima de Santos, São Paulo, marcada com erva-mate, o baile da família Anastácio, com o intuito de atrair pretendentes ricos para o casamento da filha Maria Pampiana. Alegóricas, as histórias das personagens permitem múltiplas apreensões, já que a dramaturgia do texto é habilidosamente tecida com as dramaturgias de cena, dos atores e atrizes que cantam, dançam e também executam ao vivo as músicas com função épico-narrativa do espetáculo.

Assim, mantém durante todo o tempo a relação de cumplicidade com o público. Tanto que a peça foi iniciada com aproximadamente 100 pessoas e terminou com mais de trezentas, até onde foi possível contar. Com tratamento farsesco (o que também é utilizado como traço estilístico da rep-resentação dos atores e atrizes), o espetáculo trata-se de excelente exemplo da apropriação bra-sileira da estrutura do teatro de forma épica, esbanjando características históricas do teatro popular em obra rigorosamente contemporânea, repleta de lances de teatralidade.

Alguns exemplos são as pantomimas que conferem dinâmica aos quiprocós, os desenhos de cena contínuos e coreografados pela Companhia com maestria, além de achados como a representação do homem submisso à mulher, o que se altera apenas quando este está embriagado. Outra característica do trabalho do grupo é a manutenção de forte referência da cultura gaúcha, que, a partir da disponibilidade e abertura aos processos de trabalho de outros coletivos, transforma-se dinamicamente. A Cia. Oigalê já viajou por muitos estados brasileiros, buscando não apenas apresentar-se como conviver com as pessoas e compartilhar vivências, verdadeiras trocas. Como ocorreu nesta edição do Festa em Santos: o grupo esteve na cidade por vários dias, assistindo, dialogando e partilhando com todas as pessoas das quais se aproximavam.

Os seis integrantes do coletivo, Diana, Giancarlo, Hamilton, Mariana, como Minuana, Paulo Brasil e Paulo Roberto Farias, realizaram interna pesquisa a respeito da cultura do Sul do país. Eles demonstram em sua atuação que todas e cada uma das pessoas do grupo estão comprometidas com o todo da obra, desde sua concepção até as desmontagens, rumo a novas paradas.

A narrativa escrita por Abreu lança para o público sementes de sonho, transportadas em conjunto com a trupe numa carroça-carcaça multifuncional, característica primordial da cenografia e adereçamento no teatro popular. Essa utopia é demonstrada na metáfora da Patchamama, de-usa-mãe suprema ligada à terra, à criação, relacionada à figura de Pampiana. Esta se liberta porque não aceita que decidam por ela.

Alguém do público comentou: 'De onde ela tirou aquela voz? Ah, ela é feminista!' Porém, o texto e a forma de conceber e realizar o espetáculo e a cena sugerem mais uma fala feminina, poética e sensível, a respeito de como se está tratando aquela que é nosso solo e que este coletivo busca conhecer cada vez mais, trilhando uma belíssima história com sua caravana: a terra como estrada, passagem, moradia e sobretudo lugar de conviver. 'O impossível não passa de sonho até acontecer’.

‘Júlia’, do Cirquinho do Revirado 

A peça ‘Júlia’ do Cirquinho do Revirado (Criciúma/SC) foi encenada no dia 9 de setembro, às 21 horas, na Praça dos Andradas. Com dramaturgia de Fabiano Peruchi, Pépe Sedrez, Reveraldo Joaquim e Yonara Marques, o teatro tem direção de Pépe Sedrez e elenco formado por Reveraldo Joaquim e Yonara Marques.

Na peça, Júlia, uma mulher das ruas, vem chegando.  Palheta, seu fiel escudeiro, é quem a conduz. Na bagagem, coisas do mundo, coisas da vida, tantas coisas. Entre realidade e ilusão há uma linha muito tênue, onde uma mulher sem pernas seria capaz de rodopiar. Esta dupla errante gira o mundo ou é o mundo quem os gira? Excluídos pelos excluídos, dizendo-se donos dos restos de um circo incendiado, Júlia e Palheta “se viram”.  Não é fácil ter pernas! Segue relato de Reveraldo Joaquim.

NARRATIVA

'Julia' é um espetáculo de rua. Escolhemos sempre falar de algo que esteja pulsando dentro de nós. Desta vez, queríamos falar de tudo que gira, os medos e fracassos da roda da vida. Na pesquisa  exploramos o mundo da bufonaria, da ciganagem, dos errantes, dos excluídos e dos excluídos até pelos excluídos. Pretensão é o que o ator não pode ter, pois a arte ela é muito ampla, atinge as pessoas de maneiras muito distintas. Claro que pretendemos correr o mundo ainda com Julia, mas sem a pretensão de dar uma moral, só queremos levar 'Júlia' às pessoas.

DRAMATURGIA

A dramaturgia deste espetáculo, foi toda levantada à partir de trabalho corporal do ator. Estimuladas pelo trabalho de direção dentro do eixo que estávamos propondo como argumento.O processo de montagem passou por várias etapas, onde o grupo pode pesquisar algumas linguagens que vieram somar na construção da peça, como: Oficina de Circo, Oficina de Bufão e Música para Teatro.

Além disso, a produção do espetáculo contou com artistas de distintas localidades, como a experiente Diretora de Arte Maíra Coelho, de Porto Alegre, que assina também os figurinos, além de participar da cenografia.  Carlos Eduardo Silva, de Florianópolis, criou maquiagem e caracterização dos atores, enquanto Gregory Haertel assessora a equipe no que tange à Dramaturgia de Júlia, a partir do que já havia sido criado.

Para a direção deste trabalho o Cirquinho do Revirado chamou Pépe Sedrez, diretor da Cia Carona de Teatro, de Blumenau. “Partimos de uma gama de temáticas ícones, como circo de horrores, bufonaria, ciganagem, rodas e saias... Buscamos entrar no universo dessas figuras errantes e imprimi-lo no corpo dos atores. Um momento crucial na construção do trabalho é quando esses estímulos externos passam a dialogar com as verdades do próprio ator. Acredito que somente assim o ator se apropria das informações, criando um ser ímpar”, diz Sedrez. O grupo propõe em cada montagem chamar um diretor diferente por acreditar que relacionando-se com pessoas e processos distintos aprende na prática que a arte teatral é múltipla.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

O processo de montagem passou por várias etapas, onde o grupo pode pesquisar algumas linguagens que vieram somar na construção da peça, como: Oficina de Circo, Oficina de Bufão e Música para Teatro. A primeira etapa durou três anos, consideramos os anseios, as vontades, já uma etapa. Três anos pesquisando o argumento, o eixo norteador que era: "o redondo", tudo que gira.

Quando já tínhamos uma pesquisa bem aprofundada doque realmente queríamos comunicar naquele momento de nossas vidas a segunda etapa foi conseguir verba para poder colocar nosso plano em prática. Nos inscrevemos para o edital Elizabet Anderle de Santa Catarina e ganhamos um premio de R$ 50.000,00.

A terceira etapa se deu na sala de trabalho mesmo, construção da dramaturgia, criação de personagens e cenas, roteiros, tudo dentro de sala com todo o material já recolhido de 3 anos de pesquisa. Muito trabalho corporal proposto pelo diretor convidado, estímulos dados  à partir de provocaçoes dentro do tema. Quando já tínhamos levantado  bastante material de personagens, fomos experimentar na rua. A estreia foi depois de quase oito meses de trabalho.

FIGURINOS E CENOGRAFIA

Como cenário de Julia e Palheta temos a própria rua. Uma carroça que chamam de casa, construida apartir de elementos que lembrasse coisas catadas na vida, em cada praça, de cada lugar, e muitas informações de um suposto circo que havia pegado fogo, ficaram com os restos. as influencias são muitas: Góia, Bosch. Filmes como: "Feios, Sujos e Malvados", alguns livros de Gabriel García Marquez, pesquisas dentro do mundo da ciganagem. Mas a influência maior seria Bispo do Rosário.

REPERCUSSÃO

Estamos com este espetáculo desde fevereiro de 2011. Já percorremos por quase todos os estados brasileiros. Fizemos algumas turnes pelo Sesc e já fomos em muitos Festivais. A receptividade é sempre muito positiva, São duas figuras fortes que chegam numa praça para fazer seu número. Muita coisa bacana já rolou, em geral as histórias que mais marcam são aquelas que afetam diretamento o povo da rua, o povo que vive da rua. Dão histórias sempre muito fortes.

As revira-voltas de Júlia e Palheta, a dançarina aleijada e seu mais que fiel parceiro

Por Simone Carleto

Como um fechamento estupendo de programação extensa e intensa promovida pelo Movimento Teatral da Baixada Santista, o Festa 57 teve como última apresentação teatral, no dia 9, às 21h30, na Praça do Andradas, o espetáculo de teatro de rua Júlia, com o Cirquinho do Revirado, de Criciúma, Santa Catarina. O Festival proporcionou a Santos a possibilidade de ser cenário para diversos espetáculos de todo o País, construídos em processo de pesquisa da linguagem teatral e muita dedicação em atividade continuada, de muitos coletivos da área, como é o caso dos artistas do Cirquinho.

O Grupo, que teve uma pequena lona de circo com a qual mambembava pelo território brasileiro, adotou o nome revirado - apenas parecido com o nome de um de seus criadores, Reveraldo Joaquim -, no sentido de revirar, transformar, mudar, girar. Revirado era o nome do boneco Mestre de Cerimônias do teatro de fantoches elaborado pelo casal. Assim, a trupe, que conta com seis trabalhos em repertório, tem também como criadora a belíssima atriz Yonara Marques, além de Luan Marques Joaquim e Nathalie Soler na técnica e apoio durante o ofício.

Tendo a exclusão social como argumento e mote para a criação artística, ator e atriz-criadores trazem à tona o universo grotesco, característica inerente aos seres humanos, mas que, devido ao chamado processo civilizatório, fica mascarado em tantas atitudes contraditórias que se caracterizam, talvez, na barbárie que vivemos e que muitos buscam naturalizar. Júlia e Palheta formam uma dupla de artistas mambembes, que apresentam o número 'A dança da aleijada’.

Desconstruindo muito do que se considera humano e que representa um certo verniz social, os artistas adotam postura rigorosamente contundente, escatológica, primal, totalmente coerente com a ideia de possibilitar ao público colocar-se em situação, imaginando como seria mover-se sem o funcionamento dos membros inferiores. Com a utilização de uma (super)traquitana, cuja visualidade foi composta a partir de inspiração na obra artista Artur Bispo do Rosário, a Cia. transformou a praça num espaço de revelação da miséria humana, em seu sentido material e filosófico.

Sempre se relacionando atentamente a tudo que acontecia, ator e atriz tiravam proveito cênico improvisacional das interferências próprias do espaço público. Foi o caso de um homem cuja aparência remetia diretamente à personagem Palheta (este, assim como Júlia, apresentava-se de modo a identificar-se com moradores em situação de rua, com poucas peças de roupa, desgastadas e sem possibilidade de se manterem limpas). O aparato transformava-se continuamente em formas diferentes de Júlia mover-se sem utilizar as pernas.

No início parece ser um grande corpo, coberto com uma saia gigante; depois aparece de dentro do tecido uma escada; em seguida a parte de baixo da traquitana é utilizada como um carrinho que a atriz movimenta com o troco apoiado no solo; volta para a traquitana com uma cadeira, também com rodinhas, que forma uma instalação plástica; e tem seu ponto máximo com a execução de uma dança sobre um eixo giratório, que lembra uma boneca mecânica, porém com toda a expressão de Júlia e a superação de uma artista aleijada, o que ela utiliza como justificativa para a crueldade com que trata Palheta, literalmente no chicote, como um animal.

É incrível a genialidade do casal de Criciúma, que demonstra virtuosísticamente, na atuação brilhante, como a cultura popular é complexa, potente e, portanto, rica. Movido pela luta pela sobrevivência, por condições de vida dignas, o povo é capaz de criar e recriar instrumentos que tragam o registro e memória daquilo que nos é essencial, parte inseparável de nossa existência e nada menos concreto que o suficiente para se alimentar hoje.

Após surpreender o público, mostrando que suas pernas funcionam perfeitamente bem - estava justamente aí o recurso metalinguístico que sustenta todo o roteiro - Júlia diz algo como: “O que nós conseguimos de dinheiro é suficiente para comermos hoje, Palheta. Amanhã a gente pensa o que faz. Amanhã é outro dia”. E seguem, a reinventar(se), na ficção e na vida, para outras praças, outras paradas, trilhando a estrada da utopia de que falou Eduardo Galeano. Que as palavras de Júlia e Chico Buarque se tornem realidade: Amanhã vai ser outro dia! E que continue a Festa do teatro em Santos com a conquista do Fomento, assim como a programação do dia seguiu com água(s) nova(s) brotando e a(s) gente(s) se amando, sem parar.

‘A História dos Ursos Pandas’, do Teatro Vila Velha

O espetáculo 'A História dos Ursos Pandas', do Teatro Vila Velha (Salvador/BA) foi apresentada gratuitamente no dia 5 de setembro, às 21 horas, na Casa da Frontaria Azulejada. Com texto de Matéi Visniec, direção de Marcio Meireles e elenco formado por Fernanda Veiga, Neto Cajado e Claudio Varela. A montagem aborda a história de dois jovens que acordam na mesma cama e não se lembram como foram parar lá. Os dois decidem iniciar uma relação e fazem o acordo de passar apenas nove noites juntos e separar-se logo em seguida. As nove noites passam lentamente e parecem uma vida inteira, que abriga alegrias, descobertas, desilusões, novos e velhos rituais de amor.

Sobre o isolamento

Por Luiz Eduardo Frin

Na noite do último sábado, uma ambientação bem cuidada e de causar impacto recebeu o público do espetáculo ‘A História dos Ursos Pandas’ na Casa da Frontaria Azulejada em mais uma apresentação do Festa 57. O trabalho integra o Projeto Matéi, realização do Teatro Vila Velha de Salvador – BA que, sob a direção artística de Marcio Meirelles, leva à cena cinco peças de Matéi Visniec, dramaturgo romeno nascido em 1956.

O centro da cena é ocupado por um jovem casal que, sem roupas, dorme envolto por tecidos leves e transparentes. Ouve-se uma composição de Alessandro Marcello, compositor que viveu entre os séculos XVII e XVIII e o casal não está sozinho. A cena é observada à distância por três personagens enigmáticas com suas individualidades devidamente preservadas por indefectíveis óculos escuros.

O casal desperta e expõe sua memória difusa ao público, pode-se inferir, mas não se sabe exatamente como se conheceram e o que fizeram até aquele despertar, situação que perturba a personagem masculina que insistentemente, como que para atestar sua masculinidade, pergunta se eles haviam feito amor. A partir daí os dois decidem passar nove noites juntos e se separarem em seguida.

A união serve como pretexto para o isolamento dos jovens. Afastados do mundo, eles se bastam e não permitem que o exterior interfira em suas vidas. Durante a peça, por diversas vezes as personagens que observam a cena à distância tentam contato com o casal, mas só o que conseguem é deixar recados na secretária eletrônica.

O texto traz uma bela reflexão acerca do isolamento do indivíduo contemporâneo. Absorto por uma relação que pode, inclusive, ser de cada um consigo próprio, o casal se afasta do mundo e da história. A música do passado, os lençóis, os telefonemas, e outras interferências que ocorrem durante a peça são apenas isso: intercorrências que não abalam o pacto do casal de se isolar, ainda que simbolicamente. Ao final das nove noites, o que os espera... A morte? Ou já estariam mortos?

Curiosamente, a ambientação criada por Marcio Meirelles, a despeito de dotar de elementos atemporais a encenação, dificultou o trabalho do jovem casal protagonista do espetáculo: Fernanda Veiga e Neto Cajado. Ao optar por utilizar e ressaltar o grande espaço da Casa da Frontaria Azuleja, o encenador expôs a dificuldade dos interpretes principais em acompanhar e valorizar as nuances e as diversas camadas de apreensão do texto de Matéi. O resultado foi uma interpretação, em muitos momentos, monocórdica e insegura. Em defesa dos dois, a sua juventude e a ciência que a apresentação de espetáculos em festivais pode, justamente, auxiliar no processo de aprendizado da técnica da adaptação a diferentes espaços e a diferentes públicos.

MOSTRA ESTADUAL

'Circo do Só Eu', do Barracão Teatro

O espetáculo 'Circo do Só Eu', do Barracão Teatro, foi apresentado no dia 2 de setembro de 2015, às 20 horas, no Teatro Guarany. Com direção, concepção e criação de Esio Magalhães, tem produção executiva de Clau Vianna e Suzana Santos. Na peça, O Majestoso Circo do Sol, com todas as suas atrações fenomenais, aceitou prazerosamente o convite para se apresentar nessa cidade, porém recebeu uma outra proposta muito mais lucrativa e decidiu cancelar, de última hora, a apresentação. Zaborim, o palhaço, vem até vocês para tentar apresentar sozinho o grande espetáculo com números de equilíbrio de pratos, macacos em monociclo, hipnose, mágica, acrobacia e muito mais! Muitas são as confusões e trapalhadas deste palhaço durante o esforço imensurável de realizar sozinho o espetáculo de uma companhia inteira. Confira a seguir o depoimento de Esio Magalhães.

NARRATIVA

O espetáculo trata do circo. Sobre um circo que cancela a sua apresentação e uma pessoa que veio ver o espetáculo, no caso um palhaço, acaba tentando fazer o espetáculo sozinho. A intenção de levar o espetáculo ao público é diverti-lo e passar bons momentos juntos!

DRAMATURGIA

O texto surgiu da necessidade de comunicação com o público. Na verdade o espetáculo não tem um texto escrito. A improvisação está muito presente, pois o palhaço interage com o espectador a todo instante. Tudo que é falado se refere ao jogo que o palhaço estabelece com o público. Não existe uma mensagem ou uma tese na qual o texto esteja pautado. As referências de criação os artistas e propagandistas de rua.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

O espetáculo foi criado na rua durante a temporada de verão que passei em San Bernardo, Argentina. Estava fazendo uma residência no Circo Vachi, circo do palhaço Chacovachi. Foram dois meses de trabalho. A cada noite apresentava duas sessões do espetáculo na rua. No começo, só tinha uns números e ia pra rua para experimentá-los com o público. Aos poucos fui entendendo o que deveria fazer para fazer o espetáculo mais potente e mais comunicativo. Assim voltei para o Brasil e depois criei o cenário , o figurino e todo o roteiro do espetáculo.

FIGURINO E CENOGRAFIA

O cenário remete à um circo. Um mastro e uma lona que representa o Circo. O restante são os aparelhos que o palhaço utiliza para seus números.

REPERCUSSÃO

Estamos em cartaz desde 2003 e tem muitas histórias! Já fomos para Campos de refugiados de guerra no Deserto do Saara, fizemos uma expedição em comunidades ribeirinhas dos rios Tapajós e Arapiuns, no Pará. Já ficamos em cartaz em teatros, em circo, na rua... A recepção do público é sempre muito boa!

A arte de fazer rir superando obstáculos

Por Rodrigo Morais Leite

Como seu título já indica, ‘Circo do só eu’ é um espetáculo solo de palhaço, criado e executado por Esio Magalhães, do grupo campineiro Barracão Teatro. Sua premissa, própria da linguagem em que está inserido, é simples e poderia ser resumida assim: ao ver o seu circo abandonar determinada cidade, o palhaço Zaborim resolve, para atender à demanda do público, substituir sozinho a atração que se foi. Com essa intenção, Zaborim entretém sua audiência apresentando uma série de números circenses, nem todos ligados ao universo específico da palhaçaria – como, por exemplo, o equilíbrio de pratos, a hipnose e os truques de mágica. É o que basta para a realização de um espetáculo bastante divertido.

Embora tenha sido concebido para a rua, por questões meteorológicas a apresentação de ‘Circo do só eu’ foi transferida para o Teatro Guarany, uma contingência que, com certeza, acarretou uma quantidade considerável de problemas à produção e, mais ainda, ao artista responsável pela obra. Tratando-se de um espetáculo relacional, isto é, amparado no jogo que o ator desenvolve com os espectadores, a separação rígida estabelecida pelo palco italiano entre a cena e a plateia só poderia, em tese, atrapalhar, por dois motivos básicos: reduzir o horizonte espacial do ator, obrigado a manter uma relação frontal com o público; interpor entre um e outro um fosso, algo que obviamente só dificulta um contato mais próximo do primeiro com o segundo. Para a felicidade de todos, mais do que superar semelhantes obstáculos Esio Magalhães soube utilizá-los a seu favor, transformando-os em motivos de piada, numa demonstração cabal de desenvoltura.

Sendo ‘Circo do só eu’ um espetáculo solo, percebe-se nele algo parecido com o que se vê nos monólogos do teatro ‘tradicional’, nos quais, na falta de um interlocutor, cabe à plateia assumir esse papel. No caso específico da linguagem clownesca, sem poder contar com o chamado clown branco, aquele que normalmente serve de escada ao outro palhaço, o augusto, Esio Magalhães acaba delegando ao público tal função, solicitando sua participação nos números apresentados. Isso quer dizer o seguinte: ao chamar os espectadores a dividir a cena com ele, o palhaço de Magalhães faz deles escada para suas pilhérias. Contudo, devido às eventualidades inerentes de um espetáculo que se propõe totalmente aberto à participação do público, muitas vezes cabe a este o desfecho da piada, adquirindo assim, no seu desenrolar, um protagonismo curioso, a tal ponto de não se saber exatamente, nessa relação, quem ‘zoa’ e quem é ‘zoado’.

Para que a comicidade de ‘Circo do Só Eu’ funcione plenamente, é necessário da parte do ator uma capacidade considerável de improvisação, o que não quer dizer, nem de longe, a inexistência de um roteiro pré-estabelecido a guiá-lo, sem o qual, provavelmente, a obra não se manteria de pé do início ao fim. Dentro desse roteiro, verifica-se que não há espaço para um humor excessivamente grotesco, algo quase inerente à arte do palhaço. Ao optar por uma caracterização, dir-se-ia, mais decorosa, o grau de dificuldade na execução do espetáculo teoricamente aumenta, na medida em que Zaborim não recorre a certos recursos infalíveis para a irrupção de risos desbragados, tais como palavrões e piadas escatológicas. Sem deixar em nenhum momento ‘a peteca cair’, mesmo se deparando com todos esses reveses, Esio Magalhães cumpriu com galhardia o objetivo primordial de seu métier: alegrar as pessoas ali presentes.

Um clown de excelência

Por Bruno Fracchia

Concebido para o Teatro de Rua, Circo do só eu foi apresentado no FESTA57 no Teatro Guarany. Mas como deve ser uma apresentação desta obra em seu espaço de origem? Tal curiosidade se justifica: embora seja nítido que na praça pública ou no edifício teatral tradicional, Ésio Magalhães, com seu palhaço Zamborim, é um clown em sua excelência, a sensação é que na rua o espetáculo ganha agilidade e uma relação ainda mais potente com o público.

Mesmo fora da área de atuação original deste trabalho, Ésio hipnotiza com suas habilidades acrobáticas, rapidez de raciocínio e agilidade verbal que de forma imediata estabelecem em cena o jogo proposto. E tudo se torna ainda mais belo pelo fato do domínio da linguagem clownesca não aparecer em cena travestido de virtuosismo.

Mas pensar que as habilidades do artista são frutos apenas de talento é desmerecer todo seu histórico. E esta é uma das mensagens que podem ser apreendidas com este trabalho: se tornar um palhaço é um trabalho que exige o comprometimento de uma vida. Se Ésio é um mestre em sua arte, apresentando o grau de excelência artística visto em cena é por conta de anos de trabalho e estudos mundo a fora. Não é brincadeira se tornar um palhaço. Que todo aquele que pensa ser clown ou queira se tornar um, reflita muito bem antes de embarcar nesta jornada.  Aos inspiradores Ésio Magalhães e palhaço Zamborim, meu muito obrigado.

'Maria que Virou Jonas ou A Força da Imaginação', da Cia Livre

No dia 3 de setembro de 2015, às 20 horas, no Teatro Guarany, a Cia Livre encenou o espetáculo 'Maria que Virou Jonas ou A Força da Imaginação'. A peça tem dramaturgia de Cássio Pires, direção de Cibele Forjaz e atores-criadores Edgar Castro e Lúcia Romano. O mote do espetáculo nasceu da história da Marie que vira Germain, apresentada pelo filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) no provocador ensaio “Da Força da Imaginação”. O historiador e sexólogo Thomas Laqueur (1945) recontou a fábula no livro “Inventando o Sexo”, no qual discute que o que entendemos como sexo e que as chamadas ‘verdades biológicas’ na realidade são construções culturais. O relato ganhou tradução cênica na adaptação da Cia. Livre, que recria o caso de Marie-Germain que após a mudança de sexo é aceito socialmente como homem – destacando dali o tema da transformação do corpo. Confira abaixo o depoimento de Edgar Castro.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

A montagem do espetáculo foi parte de um projeto maior. Etapas como os estudos teóricos, as improvisações sobre o tema, deglutição a partir das primeiras matrizes dramatúrgicas, elaboração de workshops pessoais sobre as personagens transexuais, a encenação a partir da redação do texto foram algumas das etapas desse processo. A grosso modo, diria que o processo abriu em nós um novo campo de percepção no que se refere às dinâmicas normativas que formatam nossa percepção sobre as identidades de gênero.

FIGURINO E CENOGRAFIA

A cenografia, assinada por Marcio Medina, e os figurinos, assinados por Fabio Namatame, foram criados a partir de um intenso diálogo desses criadores com as dinâmicas de construção do espetáculo, seja nas referências trazidas pelos atores na elaboração das personagens, seja nas indicações espaciais operacionalizadas pela diretora Cibele Forjaz. Fundamentalmente, a ação se desenvolve no interior de uma casa, espaço sugerido em dois ambientes que se comunicam entre si - a sala e a cozinha, e em outro espaço denominado “camarim”.

REPERCUSSÃO

As leituras do público em relação ao espetáculo são bastante diversificadas, e as vias de acesso ao universo temático também variam de pessoa para pessoa. Talvez um certo atordoamento com o desdobramento das identidades das personagens e as configurações afetivas do casal que vão se modificando no decorrer da fábula, sejam alguns dos comentários mais presentes por parte do público.

Bicha jovem é espancada(o) na rua aqui próxima ou Quando imaginar [(não) x é] = viver ?

Por Simone Carleto

'Uma imaginação fortemente engajada com o acontecimento pode provocá-la'?
Montaigne, em 'A força da imaginação'', citando os clérigos.

A peça apresentada pela Cia. Livre, em 4 de setembro de 2015, na edição 57 do Festival de Teatro de Santos, com texto de Cássio Pires, a partir de processo colaborativo com Edgar Castro e Lúcia Romano e direção de Cibele Forjaz, teve como base ensaio de Michel de Montaigne. Neste, é ditada a história de Marie, que até os vinte e dois anos foi conhecida como mulher. Após um esforço físico para saltar, apareceram os órgãos viris de Marie, transformando-se em Germain. O argumento dramatúrgico metalinguístico adapta a história para a atualidade. O fato de não vivermos mais na Idade Média, como é citado no texto, não impede que estejamos em plena barbárie, vivendo de modo preconceituoso, intolerante e violento. Assim, o tema abordado é de total relevância, considerando o extermínio de muitas pessoas que, como é dito no espetáculo, são assassinadas por manifestarem em seus corpos sua opção de gênero em atrito com as convenções e normatização social, como é o caso das transsexuais.

O espetáculo apresenta inúmeras camadas dramatúrgicas (dramaturgia do espetáculo, texto, cena e do ator e atriz), entre outras possibilidades de leitura dos elementos em cena, como é o caso da trilha sonora. Em fricção com a realidade, a narrativa propõe o buraco como metáfora, a partir de recursos de iluminação em composição com o praticável circular, marca registrada da Companhia, tornando múltipla a simbologia do(s) orifício(s) e sua relação metafórica e física. Assim, a fábula de Marie é transportada para a atualidade, tendo como protagonista NeoMaria, ao lado de Jonas Cou(i)to.

Inevitavelmente, para ser possível comentar a concepção do espetáculo, seria importante assisti-lo mais vezes, já que a proposição é que os talentosíssimos Edgar e Lúcia possam apresentar as duas personagens: Ela (que se transforma nEle) e Ele (que se transforma nEla). O prólogo é realizado no saguão, em forma de videoconferência, com projeção em dois ambientes caracterizados com baús-camarins, separados por araras com figurinos. No espaço do teatro propriamente dito há uma estimativa a partir da possível ideia de escolha: nessa apresentação a maior parte do público desejaria ver o ator assumindo a personagem Ela e a atriz Ele.

O que foi confirmado pelo acaso, no sorteio da carta (por uma jovem do público, pequena parte do qual estava sobre o palco) da Dama de Paus em vez do Cavaleiro de Copas. Outro aspecto importante é que, no palco do Teatro Guarany, a proposição cênica que se apresentou em São Paulo em sua estreia no Sesc Belenzinho não pode ser mantida, tendo em vista a quantidade de pessoas e, consequentemente, interferiu na relação estabelecida com o público a partir do palco italiano.

Em grande parte formado por jovens, o público mostrou-se interessadíssimo na forma e temática, como citou um garoto: ‘Estou excitada(o)’, parafraseando o modo como ator e atriz se referem a ele(a) que se transformou em outro(a). Desse modo, o canto da sereia atraiu a curiosidade para a indagação de como seria (o que em diversos momentos pode causar nós no pensamento (a nós que fazemos esse questionamento) de como seria(m) determinada(s) cena(s), se se a atriz fosse Ela transformando-se nEle, e o ator fosse Ele transformando-se nEla.

De qualquer modo - a despeito dos aspectos culturais da educação moralizante -, as inúmeras possibilidades de manifestação da opção de gênero e sexual são colocadas em questão: ‘pobre daquele que é apenas o que é’. Que o exercício de alteridade no teatro seja, como expressado aos microfones fora da arena definida pelo praticável, exemplo do que pode ser vivido na realidade. E que cada um possa aceitar em si aquilo que, em tese, aceita no outro.

Em cena, uma tese acadêmica. O público, a banca examinadora

Por Bruno Fracchia

Assistir a grupos como a Cia. Livre (uma das mais consagradas companhias do Estado de São Paulo) é uma obrigação de qualquer artista teatral. Por ter um trabalho referencial, é de extrema importância a presença deste grupo no FESTA57 com seu mais novo espetáculo, Maria que virou Jonas. Apresentando uma trama que parte da história de mudança de sexo citada por Montaigne no Ensaio XXI, Da Força da Imaginação, a peça utiliza entre seus recursos estéticos práticas já bem conhecidas da diretora do espetáculo: o metateatro (também praticado em recentes trabalhos da encenadora fora da Cia. Livre) e o sempre virtuoso desenho de luz.

Partindo do citado ensaio de Montaigne, nesta peça a Cia. Livre parece levar aos palcos uma tese acadêmica: como Introdução, há o prólogo com apresentação de um posicionamento ideológico, seguida da explicação do ponto de vista adotado pelos artistas (o equivalente a Justificativa de uma dissertação). Já o desenvolvimento, em andamento lento (não assumido como proposta), é repleto de reiterações (são comuns frases e diálogos que repetem ideias que acabaram de serem ditas). Por fim, há uma didática conclusão (como se observa em frases como “eu estava aqui o tempo todo”, dita pelo Marido - personagem de pouca gradação dramática - ao explicar uma determinada transformação). O desfecho conta com um happy end de casal romântico de telenovela, corente com diálogos construídos com forte tinta televisiva.

A carência de síntese dramatúrgica e a falta de unidade nas opções da encenação são lidas como uma inesperada falta de justeza nas opções estéticas desta obra. Desta vez, o discurso da Cia. Livre, sempre bem fundamentado academicamente, parece ter ficado no campo das ideias. Uma atriz caracterizada com uma peruca teatral dizer “nós, travestis” e um intérprete apenas evocar no discurso os homossexuais e lésbicas vítimas de violência, mas os mantendo imageticamente fora de cena, são contradições maiores dos que a de Gianfranceso Guarnieri abordando o universo da greve em Eles não usam Black-tie, mas a mantendo fora de cena, situando tudo na individualidade de um lar. Uma diferença é que naquela época a simples introdução do assunto já era extremamente inovador, dada sua ausência no universo teatral brasileiro.

É inegável que a obra é muito rica, fornecendo material para profundos estudos acadêmicos. Mas dadas as limitações de espaço, concluímos reiterando a importância de se assistir a grupos como a Cia. Livre. E não esquecendo que, embora haja a existência de demandas muito bem vistas por avaliadores de Fomentos e editais, devemos sempre nos perguntar se realmente queremos tratar destes assuntos ou apenas garantir chances maiores em processos de Fomentos.

'Hygiene', do Grupo XIX de Teatro

No dia 4 de setembro, às 16 horas, na Rua do Comércio, ocorreu a sessão gratuita de ‘Hygiene’, do Grupo XIX de Teatro. Com dramaturgia de Janaina Leite, Juliana Sanches, Luiz Fernando Marques, Paulo Celestino, Rodolfo Amorim, Ronaldo Serruya e Sara Antunes. Na direção, Luiz Fernando Marques. O elenco é formado por Janaina Leite, Juliana Sanches, Paulo Celestino, Rodolfo Amorim, Ronaldo Serruya e Tatiana Caltabiano.

A peça é baseada em uma pesquisa sobre o processo de higienização urbana no Brasil do fim do século XIX, onde um grande contingente de culturas e ideias dividem o mesmo teto - o cortiço. E desse caldeirão de misturas surgem os embriões de importantes manifestações de nossa identidade, assim como as desigualdades sociais que marcam profundamente os nossos dilemas atuais. Segue o relato de Juliana Sanches.

NARRATIVA

Hygiene é um espetáculo sobre a virada do século XIX pro século XX no Rio de Janeiro, em que, em nome da higiene e da normalização,  inúmeros cortiços são demolidos para a construção das novas avenidas. Trata-se do último dia de um cortiço, e da história das pessoas que moravam nele e eram   despejadas. Enfim, trata-se de imposição pelo setor dominante. Pretendemos um encontro desses personagens com o público de hoje.

DRAMATURGIA

A criação do texto é coletiva e nossas fontes de pesquisa, as mais variadas possíveis ( lemos 51 livros, desde crônicas da época,  livros sobre doenças e higiene da epoca, documentos, O Cortiço de Aloysio Azevedo, e relatos de imigrantes ) utilizamos também histórias de avós,  musicas, imagens, enfim, um vasto material

MONTAGEM DE ESPETÁCULO

O processo demorou 13 meses entre pesquisa, levantamento de assuntos e personagens, criação de cenas, ensaios e estréia.

CENOGRAFIA

O cenário da peça é a própria cidade, a história da cidade conta essa peça conosco. Nos interessa essa fricção,  essa sobreposição de realidades, expondo a forma de vida de uma região,  o que precisa hoje ser revelado no espaço público.

REPERCUSSÃO

O espetáculo estreou em 2005 na Vila Maria Zélia,  zona Leste de SP. De lá pra cá, apresentamos em diversas cidades, estados e países: Passamos pelo Pelourinho que sofreu um processo bem parecido, pelo Acre, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Portugal, Itália, enfim, muitos lugares com realidades de urbanização diferentes. Em todos os lugares, acontece a troca, o questionamento de como o poder público influencia o jeito que moramos, como nos apropriamos desses espaços publicos, e como vivenciamos as ruas e praças.

Roupa suja se leva pra rua: o re-conhecimento de onde vi(e)mos

Por Simone Carleto

Depois de praticamente 10 anos da data de sua criação, o espetáculo Hygiene volta a se apresentar em Santos, durante o Festa 57, que ocorre neste setembro de 2015. No Grupo XIX de Teatro, coletivo responsável pela criação, dois artistas de Santos: Luis Fernando Marques e Paulo Celestino. A edição do Festival, que tem como tema a luta pela Lei de Fomento ao Teatro em Santos, contou com as falas dos artistas, o primeiro diretor e o segundo ator do espetáculo, reiterando a importância da Lei, sem a qual o espetáculo e o grupo provavelmente não existiriam. A peça foi criada de modo colaborativo, uma das características da horizontalidade decorrente de novas formas de organização de grupos de teatro, a partir do sujeito histórico teatro de grupo. Assim, a ocupação da Vila Operária Maria Zélia, idealizada em 1917 por Jorge Street (1863-1939), é efetivada a partir do projeto ‘A Residência‘, contemplado pela edição 2004 da Lei de Fomento em São Paulo - além de outras ações importantes no período, contribuindo para esse tipo de intervenção cultural.

No dia chuvoso de 4 de setembro, a Companhia iniciou a apresentação, após distribuir algumas capas plásticas de chuva, no Centro Histórico de Santos, na região do Valongo, defronte à igreja Santo Antonio Valongo, que dá nome ao Largo. O contexto apresentado é o período de transição do século XIX para o século XX, no Rio de Janeiro, em que, por conta de epidemia da febre amarela, entre outras doenças, o movimento higienista passa a defender a ideia de moradia unifamiliar, em “substituição” aos cortiços, nos quais famílias viviam de modo coletivizado, com trocas sócio-culturais determinantes para a configuração da sociedade brasileira. Imigrantes de diversos países, como Itália, Portugal, Espanha, Polônia, trabalhavam nas cidades, buscando sobreviver: operários, prostitutas, vendedores, médicos. O que estava por trás do discurso higienista era o genocídio, já que cortiços foram demolidos e as pessoas brutalmente mortas, o que dificilmente aparece na história, que normalmente apresenta para estes fatos o nome de “reforma".

Algumas cenas foram destaques no que se refere à relação estabelecida entre obra e público. A penúltima cena, em que o médico anuncia a demolição do cortiço (em tempo pretérito, dada a estrutura épica do espetáculo), contou com o soar de uma sirene, que pareceu fazer parte da trilha sonora do espetáculo, atribuindo à representação na Casa da Frontaria Azulada um ar bucólico. Numa das cenas apresentadas na trilha do Bonde, que irrompeu a cena, prevaleceu o caráter cômico do diálogo entre o Português, chamado de explorador pelo Italiano. Nesta, os dois inserem galanteios a duas moças do público, o que inclui uma intervenção poética a respeito do local de moradia e a felicidade.

Pouco antes, a cena anterior mostrou Carmela, a italiana que trazia num grande cesto as roupas misturadas de diversos moradores do cortiço, entre as peças um casaquinho de criança, todo estropiado, o que faz com que se imagine o estado daquela que o vestiu um dia. A personagem tem o mesmo nome de minha avó materna, a quem chamo carinhosamente de Bela. Ela, que hoje vive à margem, na periferia física e simbólica do sistema, certamente teria se emocionado profundamente se visse a cena. Saber que as personagens, no epílogo, são antigos moradores dos cortiços, destruídos em 1889, juntamente com famílias, é chocante e infelizmente real nos nossos dias. Ainda não existem condições mínimas de vida para todas as pessoas. Trabalhos artísticos consequentes como este são ações fundamentais para que a história social seja trazida à tona, atribuindo significado ao ato de contar histórias: para que a memória seja viva e as situações sejam reconhecidas como possíveis de mudar.

Quando a chuva é mais um motivo para a festa

Por Luiz Eduardo Frin

Caía uma intermitente chuva fina sobre a cidade de Santos na tarde da última sexta-feira, entretanto, um grupo de pessoas estava disposto a acompanhar a apresentação do espetáculo 'Hygiene' do Grupo XIX de Teatro no bairro do Valongo. E seria recompensado por isso. Concentrados à frente do Santuário de Santo Antônio, muitos vestiam capas plásticas, alguns portavam guarda-chuvas e outros simplesmente deixavam-se molhar. O sino tocou e iniciou-se o espetáculo.

A partir daí, artistas e públicos percorreram as ruas do histórico bairro e desfrutaram de uma das características mais fascinantes da atividade teatral. A capacidade de brincar com o tempo. Assim, envoltos por casarões que se transformaram em cenário, caminharam sobre paralelepípedos e vez ou outra tiveram de desviar do bonde que ainda circula pelos trilhos da cidade. Desse modo, todos se transportaram para o Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX, quando uma política higienista atuou no sentido de remover a população de trabalhadores, muitos dele imigrantes, dos cortiços da cidade.

O que o Grupo levou à cena foi a alegação de motivos plausíveis, no caso do espetáculo relacionados à saúde pública, para que políticas sejam exercidas no sentido de atender interesses outros, invariavelmente relacionados à acumulação de capital. Impossível assistir Hygiene sem se recordar dos recentes acontecimentos que envolveram remoções em regiões estratégicas para a realização da última Copa do Mundo da Fifa, ou das Olimpíadas do próximo ano.

A intersecção entre passado e presente foi claramente ressaltada quando um ator, vestido com roupas atuais (no caso, inclusive, com capa de chuva), invadiu a cena com um texto cujo o pressuposto central é o da dúvida que é saudável se ter em relação aos discursos oficiais. O Grupo XIX trabalha de maneira contínua desde o ano de 2001 e na sua apresentação ficaram claros os frutos desse trabalho. Seus artistas e técnicos atuaram com calma e leveza e conciliaram o íntimo com o social em um espetáculo realizado na rua.

Assim, de maneira poética e contundente, o espetáculo apresentou a relação entre a convivência de diferentes em um contexto social de dificuldades com o estabelecer da profícua cultura brasileira. As falas, os diversos sotaques, o sincretismo religioso, a música e tantos outros aspectos do que se convencionou a se chamar de brasilidade percorreram as ruas de Santos, sempre a espreita de que a qualquer momento, alguém poderia chegar, terminar com a festa e se apropriar daquilo tudo. Estejamos atentos.

'A Exceção e a Regra', da Cia Estável de Teatro

No Centro Cultural Patrícia Galvão, às 19 horas do dia 6 de setembro, aconteceu a apresentação do espetáculo 'A Exceção e a Regra', da Cia Estável de Teatro. Com texto de Bertold Brecht e direçãod e Renata Zhaneta, o espetáculo tem elenco formado por Daniela Giampietro, Juliana Liegel, Luiz Calvvo, MirieleAlvarenga,Nei Gomes, Osvaldo Pinheiro, Sérgio Zanck, Paula Cortezia e Zeca Volga. Na sinopse, uma pequena caravana participa de uma corrida em direção à cidade de Urga, a expedição que chegar primeiro ganha como prêmio uma concessão para explorar petróleo. Durante a viagem são expostos a relação entre explorador e explorado, assim como os mecanismos que legitimam o abuso de um e a submissão do outro.

Brecht e Estável

Por Bruno Fracchia

Devido à chuva que caiu em Santos no último domingo, a apresentação de A Exceção e a Regra, com a Cia. Estável de Teatro, dentro da programação do FESTA57, foi transferida de um espaço ao ar livre para as dependências do Teatro Municipal Brás Cubas. A encenação de uma das peças didáticas de Bertolt Brecht em um ambiente de certa forma segmentado a artistas corre o risco de se tornar apenas um ensaio aberto. Mas o que ocorreu foi o ato teatral em sua totalidade. Estética, conteúdo e ideologia afinados. Um trabalho emocionante, pelo resultado estético e pela demonstração (sem palavras) da defesa de uma ideologia partilhada por todo da Cia.

O autor de peças como Mãe Coragem e Vida de Galileu não criou obras para servirem de documento histórico, mas sim de material de ação a agir por sua época. E desta forma sua peça foi defendida. Uma montagem viva, urgente, agente social junto a um público constituído por muitos jovens estudantes de teatro que pela primeira vez tinham contato com a dramaturgia de Brecht, posta em cena de forma estudada, respeitosa e responsável. Em cena, um coletivo, que partilha dos mesmos ideais. Todos em constante condição de um jogo cênico que também o público, desde o início, é convidado a jogar. Isso sim uma referência de prática de um Teatro Popular.

Embora soe injusto destaques individuais, simbolizando a recusa ao virtuosismo e o comprometimento com um desempenho a serviço do coletivo, cita-se a atriz Daniela Giampietro. Na função/personagem Juiz em suas outras intervenções, sem nada fazer para aparecer, em cena ela apresenta uma força diferente, garantindo-lhe um destaque que não a faz “roubar” a cena (algo incompatível com um trabalho como este), mas que deixa sua imagem em nossa memória. Uma atriz para se observar com bastante atenção.

Para se criar uma obra com tamanha qualidade, não há segredos. É trabalho e pesquisa. O grupo recebeu o olhar de Renata Zanetha (que assina a direção), criou um núcleo de direção musical e estudou a estética do Teatro de Rua e a obra de Bertolt Brecht com seu maior especialista no Brasil, Sérgio de Carvalho. Se um assunto nos envolve e queremos encená-lo com respeito ao público, não há outro caminho. Fica a mensagem.

Um lamento é feito: a impossibilidade de ter assistido a uma das 25 apresentações realizadas pelo grupo em estações da CPTM, em São Paulo. Se o impacto já foi imenso em uma apresentação nas condições descritas acima, imaginemos em espaços de alta movimentação como os das estações de trem e metrô de São Paulo. Que o retorno da Estável a Santos seja breve. Precisamos.

Apenas uma questão de confiança

Por Luiz Eduardo Frin

A edição de 2015 do Festival Sanista de teatro, o Festa 57, tem um tema e uma bandeira de luta: A aprovação da Lei de Fomento ao Teatro para Santos. Na cidade de São Paulo, a Lei do Fomento ao Teatro está em vigor desde o ano de 2002 e, por intermédio dela, recursos públicos são destinados a grupo teatrais que, selecionados semestralmente por editais, mantêm-se em atividade continuada. Tal atividade resulta na criação de espetáculos; na publicação de jornais, livros e revistas; na realização de debates, cursos e palestras entre outras atividades.

Hoje, há na cidade mais de duzentos grupos com história de, pelo menos, dez anos de trabalho contínuo. Assim, contribuem para descentralizar a produção cultural na metrópole paulistana (pois a Lei de Fomento tem essa prerrogativa – a de incentivar a realização artística, também, em regiões periféricas) e para manter uma atividade teatral efervescente e dinâmica na cidade. Pois bem, na tarde de domingo foi a vez do Festa 57 receber a, paulistana, Companhia Estável de Teatro com o espetáculo 'A Exceção e a Regra' de Bertolt Brecht (1898 – 1956). Criada em 2001 e contemplada, já, na primeira edição do Fomento em São Paulo, a apresentação do grupo deixou clara a relação direta entre um processo continuado de atividade artística coletiva com a qualidade do resultado mostrado. Na apresentação ficou evidente que o grupo tem pleno domínio dos pressupostos do trabalho que realiza.

Desde o preâmbulo, quando a Companhia incluiu os espectadores em seu aquecimento, até o final do espetáculo, uma ligação direta entre artistas e público manteve-se estabelecida. Aliás, este é uma dos principais pressupostos do autor da peça. Para Brecht o teatro deve ser um experimento que imbrique pressupostos estéticos e sociais e, assim, ser um mecanismo a influenciar a reflexão de seus realizadores (artistas e público) com finalidade de entendimento e de transformação dos mecanismos sociais. Para isso, intérpretes e espectadores devem estar no mesmo nível e se olharem, mutualmente, como iguais, parceiros no enfrentamento das mazelas sociais.

'A Exceção e a Regra' faz parte do conjunto de textos brechtianos denominados de “peças didáticas”. Nelas, o que se objetiva primeiramente não é o espetáculo, mas, a apresentação de exemplos claros do funcionamento perverso de alguns pressupostos da sociedade que são considerados “naturais”. Como única ressalva ao contundente trabalho apresentado, apresenta-se certa tendência da Companhia em ressaltar demasiadamente sua posição acerca das questões apresentadas no texto. Principalmente por intermédio de colocações estranhas ao texto brechtiano, às vezes, o didático exacerbou-se para um didatismo exagerado e, em alguns momentos, o ressalte atravancou o desenvolvimento da apresentação da fábula. Tal didatismo correu o risco de menosprezar a capacidade crítica do espectador e, assim, quebrar o elo de confiança que uma relação entre iguais pressupõe.

'Diário de uma Revolucionária', do Núcleo Às Favas

O Núcleo Às Favas da Cia do Feijão encenou no dia 7 de setembro, às 20 horas, o espetáculo 'Diário de uma Revolucionária', na Casa da Frontaria Azulejada. A direção e dramaturgia é de Pedro Pires. NO elenco, Inês Soares Martins, Mila Fogaça, Natália Xavier, Suzana Muniz, Thais Podestá e Vanessa Garcia. A trama baseia-se no texto do diário “Paixão Pagu”, uma longa carta escrita por Patrícia para seu companheiro Geraldo Galvão quando estava presa pela ditadura Vargas. Nesta carta/diário ela conta de maneira íntima sua vida até ali.  Através da luta de Patrícia Galvão pelos ideais em que acreditava, sacrificando muitas vezes sua individualidade em prol de uma causa coletiva, “Diário de uma Revolucionária” explora a dialética do idealismo tão presente na vida e obra dessa mulher esperando chamar a atenção para o definhamento dos horizontes, dos ideais da época atual. Segue o relato de Pedro Pires.

NARRATIVA

O espetáculo foi criado a partir do livro Paixão Pagu de Patrícia Galvão que trata dos anos de militancia de Patrícia no Partido Comunista, nos anos 20 e 30 do século passado. A escolha foi feita a partir do tema de pesquisa desenvolvido pela companhia do Feijão de São Paulo - Os bons exemplos concretos. Pretendemos com isso contar a história desta personagem esquecida do Brasil.

DRAMATURGIA

O processo dramatúrgico se iniciou em abril de 2014 correu em paralelo com oprocesso de criação cênica desenvolvido na çompanhia do Feijão e que deu origem ao núcleo ás Favas.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

O processo dramatúrgico de encenação e interpretação tem como base o teatro narrativo. Estes três pilares da criação seguiram numa dinâmica paralela, ou seja com influências mútuas.

CENOGRAFIA

Os cenários se restrigem ao mínimo necessário. São caixotes e livros. Materiais que foram experimentados, entre outros durante os ensaios, e que por suas funções simbólicas e práticas permaneceram.

REPERCUSSÃO

A repercussão foi muito boa. O público sai satisfeito, ou por conhecer esta parte da vida de Patrícia Galvão, ou por nós a estarmos mostrando. Além disso, para os dias de hoje quando os partidos e a política está sendo muito questionada o espetáculo coloca questões muito pertinentes. Principalmente para os que se alinhamà esquerda.

O teatro narrativo em 'Diário de Uma Revolucionária'

Por Luiz Eduardo Frin

O drama, qualificado como aristotélico, caracteriza-se pela representação da vida por intermédio do conflito entre personagens a partir de situações que iludem como se fossem verdadeiras e estivessem acontecendo no momento presente da encenação. Durante um determinado período, principalmente durante o século XIX, teatro e drama foram praticamente sinônimos, pois ratificavam a visão de mundo da classe dominante, a burguesia. No também chamado drama burguês, no fim, o mais forte, o mais preparado, vence.

A partir de fins do século XIX, primeiro com o questionamento dos valores da burguesia, e depois (já ao longo do século XX e adiante) com a apropriação do drama por outros veículos midiáticos como o cinema e a televisão, drama e teatro deixaram de ser sinônimos. No palco, não mais uma única perspectiva do fazer teatral, mas tantas quantas a imaginação permitisse. Dentre elas, ganhou relevância a que colocou em cena romances, contos, diários, entre outras formas narrativas, na forma como originados, e não por intermédio de adaptações dramatúrgicas. O chamado, teatro narrativo.

Diário de uma revolucionária, criação do Núcleo às Favas e apresentado na noite da noite de 07 de setembro no Festa 57, insere-se nesse contexto. A principal proposição na adaptação de Paixão de Pagu para os palcos foi a de manter a forma narrativa de um diário, no caso, uma carta escrita por Patrícia Galvão (1910 – 1962) enquanto esteve presa na ditadura Vargas. Assim, trechos da vida da santista, artista, militante comunista, importante figura da história do Brasil no século XX, enfim, da mulher Pagu, foram narrados pelas seis atrizes, que também interpretaram outras personagens do enredo.

Entende-se claramente a opção da direção. A narração é eficaz instrumento de proposições reflexivas de cunho social e político, como era o caso da peça. Ao se referir uma ação no passado, o narrador distancia emissor e receptor do impacto do acontecimento presente. Afastamento que tende a minimizar dispositivos emotivos e aguçar os de análise reflexiva.
O problema da encenação foi a de não atentar com esmero, a despeito da capacidade comprovada de seu premiado diretor Pedro Pires, ao aspecto que caminhou junto ao afastamento entre cena e drama nos últimos tempos, a valorização da teatralidade. Conceito que, a grosso modo, aglutina pressupostos estéticos (visuais, sonoros, sensoriais, entre outros) que uma encenação utiliza-se para relacionar-se com o seu público, principalmente quando o elo de ligação emocional foi, propositadamente, cortado.

A despeito da utilização de uma sensível trilha sonora, a cena foi quase o tempo todo ocupada pela divisão do texto entre as atrizes sem perceptível significação ou motivação clara e por desenhos cênicos que, em síntese, se repetiam. Até mesmo um subterfúgio interessante para dar início a história e relacioná-la com o momento atual: uma ligação recebida por uma atendente de telemarketing, foi abandonado e só apareceu, timidamente, mais uma vez no decorrer da peça.

No tocante às interpretações, no intuito de não se identificarem emocionalmente com as personagens, as atrizes apresentaram dificuldades em se apropriar do texto. Assim, diferentes situações foram apresentadas, praticamente, em situação de igualdade, com prejuízo da principal qualidade do teatro narrativo: A de causar a reflexão por intermédio das diferentes nuances, e dos diferentes aspectos, muito deles contraditórios, de uma história. No caso, de uma bela e instigante história... Revolucionária.

A militância política e suas agruras em cena

Por Rodrigo Morais Leite

‘Diário de uma Revolucionária’ é um espetáculo de cunho narrativo que, como revela seu título, se propõe a contar a história de uma militante política, no caso a escritora modernista Patrícia Galvão (1910-1962), figura de estreitas ligações com a cidade de Santos. Inserindo-se na categoria mais geral do chamado ‘teatro épico’, caracterizada, entre outras coisas, pela utilização de um certo tipo de ator que, ao invés de ‘presentificar’ uma personagem, narra eventos passados, ‘Diário de uma Revolucionária’ baseia-se no texto ‘Paixão Pagu’, carta da autora paulista redigida nas prisões do Estado Novo e dirigida a seu companheiro Geraldo Galvão.

Em cena, além de alguns caixotes e algumas pilhas de livros velhos, cinco atrizes-narradoras se revezam na tarefa de contar e ilustrar aos espectadores presentes à Casa da Frontaria Azulejada parte da trajetória de Pagu, concentrada especialmente em seus anos de maior ativismo político-partidário. Nesse sentido, no que concerne à dramaturgia, percebe-se que o texto elaborado por Pedro Pires percorre um arco que vai da tomada de consciência de classe da retratada, passa pelo entusiasmo dos primeiros anos de militância e desemboca nas frustrações inerentes à luta política. Dentro desse recorte, mais do que narrar uma boa história sobre uma figura interessante, são levantadas questões que dizem respeito a todos, focadas na dialética individualismo x coletivismo. Em outras palavras, o texto procura indagar até que ponto vale a pena sacrificar a vida privada em prol de uma causa coletiva.

No rodízio orquestrado pelas atrizes, a cada momento uma delas, falando na primeira pessoa, deveria assumir a posição de narradora. Para não se restringirem apenas a esse recurso, os objetos de cena são constantemente manipulados por elas de modo a resignificá-los, quase sempre de acordo com as exigências do texto. E assim algumas caixas enfileiradas se transformam em barricadas ou livros empilhados e jogados ao chão se transformam em cadáveres que tombam.

Ao longo do espetáculo algumas canções são inseridas, gravadas ou executadas ao vivo por uma das atrizes, todas ou quase todas ligadas a algum contexto de caráter político, funcionando em cena como uma espécie de ‘descanso’ em relação ao esquema um tanto fechado exposto acima. Seria esse, aliás, um dos problemas apresentados por ‘Diário de uma Revolucionária’, obra que, embora concebida de um modo predominantemente narrativo, acaba se mostrando muito ensimesmada para os padrões de um teatro mais voltado ao gênero épico.

Embora as atrizes se mostrem afinadas no rodízio proposto pela encenação, no decorrer do espetáculo esse recurso vai aos poucos se esgotando, já que, uma vez reconhecido pelo espectador, sua repetição constante acaba se tornando algo um tanto cansativo e, por conseguinte, contraproducente. Ou seja: ao invés de potencializar o texto, valorizando-o em suas qualidades de documento histórico ou de uma história de vida exemplar, o que se retém ao final permanece encerrado nos limites da ‘fábula’. Isso não deixa de ser relativamente pouco para um grupo que tem em mãos um material tão rico e fascinante como a biografia de Pagu.

'Azar do Valdemar', da Cia dos Inventivos

A peça 'Azar do Valdemar' foi encenada no dia 7 de setembro, às 21h30, pela Cia dos Inventivos na Casa da Frontaria Azulejada. No espetáculo, a dramaturgia é de Jé Oliveira, direção de Edgar Castro e tem como atores-criadores Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Marcos di Ferreira. Na trama, uma trupe de artistas mambembes conta a história do desaparecimento de Valdemar e, com o público, tenta recriar a sua trajetória. “Azar do Valdemar” encerra a Trilogia dOs Inventivos, livremente inspirada no romance "Viva o Povo Brasileiro" de João Ubaldo Ribeiro. Em 'Azar do Valdemar', a Cia. dos Inventivos, desenvolve, por meio do teatro, informação sobre os sequestrados pelo estado policial que vigora em nosso país, denunciando simbolicamente as inúmeras injustiças do corpo social fragmentado pela violência.

É sempre hora de Teatro Épico

Por Bruno Fracchia

Tendo como tema “Fomento ao teatro para a cidade de Santos”, o FESTA57 apresenta como uma tendência de sua linha curatorial espetáculos com processo de pesquisa de linguagem e desenvolvimento possíveis graças a ações de políticas públicas, como o Fomento existente na cidade de São Paulo. Coerente com este desenho da curadoria, a peça 'Azar do Valdemar', da Cia. dos Inventivos, se coloca como grande reforço na luta dos artistas locais por uma lei que estabeleça também em Santos um programa semelhante ao cultural paulistano.

Azar do Valdemar é a conclusão de uma Trilogia da Companhia, dirigida nas 3 obras por Edgar Castro. Livremente inspirada em Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, as peças colocam em cena os párias de nossa sociedade. Valdemar e os seus apresentam familiaridade com o universo de Plínio Marcos, mas sendo marginais apenas por estarem à margem do Estado (como milhões de brasileiros). Nesta peça, os desviados da lei são os representantes Estado policial, que “pega, mata e come”.

Teatro Épico, a montagem é defendida por elenco e direção de forma muito firme. Quando atores estão bem treinados, não há porque marcações de cena parecem amarras. Apropriação de propostas temática e formal são suficientes para fazer intérpretes também criadores. Certamente ajuda muito aos atores a abordagem um universo que não conhecem dos livros ou apenas de escuta. Tratam de uma realidade bem próxima. Desta forma, sangue circula nas músicas e textos.

A pesquisa formal não é traduzida em academicismo cênico e a estética consegue, em sua multiplicidade de referências e influências, ser unitária (algo difícil, haja visto tentativas mal sucedidas já apresentadas nesta edição do Festival). O desparecido Valdemar é Amarildo. As vítimas da recente chacina ocorrida em Guarulhos. É Fabiane. Vítimas reais e esquecidas, substituídas pelo cadáver fresco da notícia de hoje, compete ao Teatro (arte tida como “torta na vida”) a missão de não permitir que suas memórias caiam no esquecimento.

O teatro épico praticado pela Inventivos é repleto de lirismo. Mas em momentos de imagens marcantes, certas frases caem num didatismo desnecessário. Na rua há muitos elementos para dispersão, mas ainda assim fica a pergunta: estas frases são necessárias? Dada à propriedade do trabalho, acredito que não. Mas este é o olhar subjetivo de alguém que assistiu ao espetáculo apenas uma vez e fora de seu espaço original. Que o Teatro Épico dos Inventivos siga vivo.

Valdemar, o popular, na noite de 7 de setembro

Por Simone Carleto

Dia da Independência (?) De reivindicações, do Grito do Excluídos e de outros tantos tentando abafar essa voz. No Festival Santista de Teatro, em sua edição 57, mais um dia de lutar pela lei de Fomento para a cidade. A Cia. dos Inventivos, formada há 10 anos em São Paulo, terminou a apresentação de 'Azar do Valdemar’ reforçando publicamente a relevância desse tipo de política cultural. A peça faz parte de pesquisa continuada do grupo, que construiu uma trilogia tendo como base a obra de João Ubaldo Ribeiro 'Viva o povo brasileiro’. Assim, foram criados os espetáculos: ‘Canteiro' (2009); ‘Bandido é quem anda em bando’ (2011); e 'Azar do Valdemar’(2014).

Neste, o coletivo assume o papel de uma trupe de circo (todos com maquiagem compondo máscaras palhacescas), de artistas mambembes e, chegando às cidades com seu furgão-palco amarelo, tomam o espaço público por uma hora - no caso dessa apresentação, em dia de chuva ininterrupta, na Casa da Frontaria Azulejada. Com estrutura popular e épica, a obra é apresentada como um espetáculo de variedades, em que os artistas-circenses apresentam a história de Valdemar, um cidadão brasileiro periférico, sonhador e desaparecido.

Desde o início, a relação estabelecida com o público é de cumplicidade, em que se sugere a possibilidade de todos se reconhecerem, pelo princípio da alteridade, como Valdemar. Um coração confeccionado em tecido e colocado como um adereço comum em cada um dos integrantes dos Inventivos, torna-os Valdemar, para além das personagens que representam na encenação. Com canto, dança e música executada ao vivo, são utilizados inúmeros recursos da forma épica. O grupo interrompe os fluxos dramáticos com música circense, música com função narrativa, perguntas com levantamento de hipóteses, para provocar o senso crítico do público, a partir de estranhamento de ações geralmente encaradas como triviais. Como exemplo, tem-se a cena em que o Mágico/Mestre de cerimônias faz com que Valdemar desapareça, após ridicularizá-lo por não conseguir executar o que era solicitado. Para tanto, o Mágico busca mobilizar o público, e boa parte o apoia, porém com algum constrangimento, dada a atitude do intérprete, reveladora de contradições da situação.

As invenções funcionais são múltiplas, para que os artistas utilizem as quatro facetas do veículo, também usado como camarim, para compor as cenas do espetáculo. Em cada parte, era proposta a relação frontal, o que talvez fosse diferente se a representação ocorresse numa praça. De modo poético, contundente, é questionada a imposição social em torno do suposto sucesso possível àqueles que “se esforçam” e “merecem” conquistar seu espaço no mundo: ‘Teus braços estão a serviço do que ou de quem?’. No ‘Show do Improviso’ vem à tona o caráter sensacionalista dos falsos reconhecimentos daqueles que "se viram” e conseguem superar as adversidades. Assim, apesar de toda a barbárie, ‘a arte tem o poder de tocar as sensibilidades mais endurecidas’. Este é um dos principais trunfos desse grupo, que demonstra imenso prazer em praticar o seu ofício teatral.

'{Entre}', do Coletivo Negro

No dia 8 de setembro, às 20 horas, a Casa da Frontaria Azulejada recebeu o eseptáculo '{Entre}', do Coletivo Negro. Com dramaturgia de Jé Oliveira e direção de Raphael Garcia, o elenco é formado por Flávio Rodrigues, Jefferson Matias, Jé Oliveira e Thaís Dias. Na trama, um conjunto habitacional e quatro vidas: uma mulher grávida e abandonada; um pai que deseja retornar ao seio familiar; um filho que busca encontrar seu caminho e identidade; e um médico que retorna ao local de nascimento para se reencontrar com seu passado. No entrelaçamento dessas histórias, aparentemente comuns, revela-se, mesmo diante das adversidades, um sentido de preservação e celebração do estar vivo, bem como a necessidade do afeto e do encontro. Confira o depoimento de Jé Oliveira.

NARRATIVA

A peça trata de relações familiares e da busca do afeto. O que se pretende é lançar luz, problematizando inclusive, a intimidade política e social da família negra.

DRAMATURGIA

Esse espetáculo estreou em 2014, no dia 13 de maio. O texto e a dramaturgia são de minha autoria. As maiores influências no campo literário artístico e cientistas sociais, são: Bertolt Brecht, Mia Couto, Gero Camilo, Guimarães Rosa, Chico Buarque de Hollanda, Pierre Claster, Walter Benjamin, Sergio Buarque de Hollanda. Mas, a música é uma forte marca no trabalho, sobretudo a obra dos Racionais Mcs.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

A peça levou um ano e seis meses para ficar pronta. Existe na peça uma relação muito íntima com a palavra falada e com a poesia que emana dessa proposta. As interpretações são pautadas pelo íntimo e suas revelações políticas, o eu e o coletivo, o público e o privado, o íntimo e o social ou o coletivo.

CENOGRAFIA E FIGURINOS

O cenário é composto por 4 portas móveis que se transformam em várias coisas ao longo do espetáculo: maca, cama, escombros, tela para projeção, etc. Os figurinos são poético-narrativos e brancos, para trazer uma unidade, ressaltar a nossa cor de pele e remeter aos rituais de religião afro-brasileiras.

REPERCUSSÃO

A peça tem recebido um retorno de público e crítica bastante animador. O que mais marca, sem dúvida, e a presença maciça dos negros no público, e as pessoas se emocionando com as experiências vista na peça, pessoas negras e brancas, sem deixar de refletir criticamente acerca do conteúdo do espetáculo.

Coletivo Negro: Teatro de Verdade

Por Luiz Eduardo Frin

Em cena, o filho interpela o pai por ele ter abandonado a família. A voz do filho é a voz do ator, a do pai: os acordes de uma guitarra. Esse é apenas um dos exemplos, talvez o mais pungente, de como o Coletivo Negro imbricou texto, cena e música na construção dramatúrgica de {ENTRE}, apresentado na noite de 08 de setembro no Festa 57.

O espetáculo, que é uma peça de teatro, um show, um baile, ou um encontro no qual dois amigos tomam um café, mescla narrativas distintas em enredo que, mesmo constituído sobre diferentes histórias e diferentes estéticas, prima pela unidade.

Para isso, foi extremamente feliz a opção de situar a ação em um conjunto habitacional. As portas de apartamentos vizinhos do cenário são abertas, fechadas, unidas, derrubadas e até desmaterializadas simbolicamente durante a encenação. Assim, fica claro que, no contexto apresentado, as fronteiras são difusas. As falas, as brigas, as lutas transpassam paredes-meias e atestam que a história de um, é a de todos.

E que história é essa? É a dos que lutam para romper pressupostos definidos antes do próprio nascimento. Dos que lutam para nascer de verdade e ser senhores dos seus destinos. O Coletivo Negro se define como “grupo de afro-descentes comprometidos com a investigação cênico-poética do imaginário construído em relação ao negro brasileiro”. Agora, como se não bastasse trabalhar artisticamente de maneira tão inspirada questões de fundo étnico-racial, o grupo vai além ao abrir um caleidoscópio imagético, sensorial e reflexivo que toca a todos que, de alguma maneira, percebem-se cerceados por estruturas sociais cristalizadas que prejulgam, qualificam, estereotipam... Matam. Simbólica e realmente.

{ENTRE} é um daqueles felizes exemplos que a crítica a aspectos técnicos da encenação é, absolutamente, irrelevante. Isso por que, ali, o show foi só um pretexto para que as portas, as couraças endurecidas daqueles que, como na música: “não vivem, apenas aguentam”, se abrissem para a comunhão de sentimentos, angústias, alegrias e reflexões. Compartilhamento capaz de transformar vidas... E isso é teatro.

MOSTRA REGIONAL

‘Nas Quebradas do Mundaréu’, da Oficina do Imaginário e Dino Filmes

O espetáculo 'Nas Quebradas do Mundaréu' foi encenado pela Oficina do Imaginário e Dino Filmes no dia 3 de setembro de 2015, às 22 horas, na Quadra da Escola de Samba da União Imperial. Com autoria de Plínio Marcos e direção de Paula D'Albuquerque, a peça tem no elenco: Dino Menezes, Rosane Paulo, Alex Menezes, Deia Oliveira, Pri Calazans, Sarah Antunes, Wagner Bastos, Marcus Di Bello, André Rey, Malvina Costa e Denise Braga.

O espetáculo é uma homenagem disfarçada de teatro. É também uma reflexão dos artistas da cidade, uma resposta aos questionamentos artísticos e às provocações de Plínio. Como ele mesmo colocou, não são suas peças atuais, o mundo é que não anda evoluindo. A obra - ou o grito - de Plínio Marcos é, ainda hoje, a voz de todos os marginalizados do sistema. Em cena, fragmentos de situações cotidianas de personagens que vivem à margem: prostitutas, ladrões, desempregados, moradores de rua. Confira a seguir o relato de Paula D'Albuquerque.

NARRATIVA

Plínio Marcos nas Quebradas do Mundaréu é uma colagem de textos do Plínio interpretados pelo olhar do tempo em que vivemos. A escolha foi feita a partir de uma inquietação: Poxa, Plínio era um grande cara. E se ele estivesse vivo?  Trabalhamos para que o público se confronte com o lado humano das personagens, fugindo dos estereótipos e sem comprometimento com a linearidade de cada obra.

DRAMATURGIA

Começamos a trabalhar em 2014, e o papel inicial da minha direção foi definir que atores estariam com cada obra (selecionei 6: Abajur Lilás, Navalha na Carne, Querô, Dois Perdidos numa noite suja, Quando as Máquinas Param e Balada de um Palhaço). A partir daí, fizemos um trabalho coletivo de se debruçar sobre o textos e buscar pontos onde todos se costuram. A dramaturgia é uma grande colagem, com alguma liberdade poética do grupo.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

A pesquisa começou em junho de 2014, ficamos uns 2 meses entre definir textos e fechar qual seria o elenco, já que precisei convidar alguns atores. Começamos os ensaios e agosto para estrear em novembro. No meio disso ainda fizemos um trabalho fotográfico junto com o Dino (Menezes, da Dino Filmes) que idealizou o espetáculo junto comigo. Fomos com as personagens nas locações realistas, os lugares onde realmente estão as protagonistas de Plínio. Isso resultou numa exposição fotográfica e também deu muita força na construção. Nessa montagem, como basicamente em todos os trabalhos da Oficina do Imaginário, busco o despojamento do ator, onde as personagens aparecem mas os artistas que as interpretam também estão presentes na cena, sem buscar a ilusão.

CENÁRIO

O cenário foi inspirado na carreira artística do Plínio, que inicia no circo. É um "circo pobre", que se configura pela iluminação. Em seis estações, os atores montam as cenas em instalações que percorrem todo o "picadeiro" armado. Tudo foi pensado para que o publico estivesse diretamente em contato com o trabalho do ator.

Parafraseando Plínio Marcos, com a licença dos mais velhos, uma prosa a respeito do Mundaréu-Santos

Por Simone Carleto

'Eu conto história das quebradas do mundaréu, / lá de onde o vento encosta o lixo / e as pragas botam os ovos. / Falo da gente que sempre pega a pior, / que come da banda podre, / que mora na beira do rio / e quase se afoga toda vez que chove / e que só berra da geral / sem nunca influir no resultado'. (Plínio Marcos)

Segundo dia do Festival de Teatro de Santos, organizado pelo Movimento Teatral da Baixada Santista. Às 22h40, após a apresentação de espetáculo da capital paulista no Teatro Guarany, foi a vez da Oficina do Imaginário e Dino Filmes trazer à tona a obra do escritor e dramaturgo santista Plínio Marcos, que viveu de 1935 a 1999. Na quadra da Escola de Samba União Imperial, os atores e atrizes, com direção de Paula D’Albuquerque, preparavam-se, aos olhos do público, para representar trechos de textos teatrais do autor: 'Quando as máquinas param’, 1963; 'Dois perdidos numa noite suja', 1966; 'Navalha na carne', 1967; ‘Homens de papel', 1968; ‘O abajur lilás', 1969; ‘Querô, uma reportagem maldita' (adaptação para teatro do romance homônimo, de 1976), 1979; Balada de um palhaço, 1986. Além de o dramaturgo estar representado em cena como narrador.

O coletivo valeu-se de uma estrutura circular, que estabelecia o espaço de uma arena circense, definida partir de luzes características deste universo, com lampadinhas em sequência, além de refletores e luminárias posicionados estrategicamente para ambientação das cenas. Dali, era possível ver a comunidade, escutar os sons e interferências do lugar.

'Em prosa e samba nas quebradas do mundaréu' foi o nome de importante trabalho musical com caráter de registro do samba paulista, lançado em 1974, pela gravadora Continental. Construída com narração de Plínio Marcos, a coletânea de sambas (samba de roda, batuque, jogo e tambu), foi gravada em parceria com Geraldo Filme (1927-1995), Toniquinho Batuqueiro (1929-2011) e Zeca da Casa Verde (1927-1994). O álbum também inspirou o nome do enredo da a escola de Samba X-9, campeã do Carnaval da Baixada Santista, em 2008: 'Nas quebradas do mundaréu’. Além disso, foi produzido, em 2013, o documentário 'Nas Quebradas do Mundaréu ou A viagem de Plínio Marcos', dirigido e concebido por Julio Calasso.

O fato de o grupo optar pela periferia como tema e território de atividade pode ser considerado um dos aspectos absolutamente relevantes da proposta de montagem. O potente elenco, em conjunto com os músicos da região, poderá estabelecer efetivamente com o público a relação pensada a priori, a partir de intenso trabalho de afinação e pesquisa de linguagem. A ideia da narrativa em que os atores e atrizes se apresentam pessoalmente antes de assumirem as personagens, bem como o rodízio das cenas no sentido horário, na forma de estações apresentadas ao público, com trabalho de dedicação ao ofício teatral, materializará o desejo de mostrar com toda a dignidade e artesania as personagens às margens do sistema. Daí a importância de políticas públicas, como o Fomento, tema desta edição do Festa, para que haja a continuidade e condições objetivas para o fazer artístico e cultural.

Problemas técnicos prejudicam espetáculo feito em homenagem a Plínio Marcos

Por Rodrigo Morais Leite

‘Nas Quebradas do Mundaréu’ é um espetáculo ousado, tanto em termos dramatúrgicos como cênicos. Se a montagem de qualquer texto de Plínio Marcos já é difícil, imagine-se a realização de uma obra que pretende reunir seis de suas principais peças, propondo uma colagem que vai de ‘Dois Perdidos Numa Noite Suja’ (1966) a ‘Querô’ (1979). Não bastasse os inúmeros obstáculos com os quais qualquer dramaturgo teria que se deparar para a construção de um ‘popurri’ como esse, pois o risco de ele não se justificar é grande, o grupo santista Oficina do Imaginário, em parceria com a Dino Filmes, optou por uma encenação com pretensões virtuosísticas. Nela, os fragmentos retirados das peças são apresentados de maneira quase simultânea, à vista do público posicionado ao redor do espaço cênico.

Semelhante configuração espacial, em forma de arena, tinha o claro intuito de mimetizar um picadeiro, lembrando que Plínio Marcos, no início de sua carreira artística, trabalhou como palhaço de circo. Para que isso se tornasse decifrável aos espectadores, a trupe se serviu de um expediente engenhoso: cobrir o local com fios de luz dispostos ao modo das lonas circenses. As cenas, divididas em seis núcleos, aconteciam na extremidade do ‘picadeiro’, distribuídas de maneira simétrica. A cada certo intervalo de tempo, um desses núcleos era iluminado e a representação a ele destinada se iniciava, enquanto os outros núcleos esperavam sua vez. À medida que a obra se desenrolava, entre uma e outra aparição de um narrador que era o próprio Plínio Marcos (sic), os núcleos iam se deslocando em sentido horário.

Devido ao fato de ‘As Quebradas do Mundaréu’ ter sido apresentado em um local tecnicamente inapropriado, a quadra da Escola de Samba União Imperial, com uma acústica problemática e repleta de ruídos no seu entorno, não foi possível ao crítico ouvir com clareza os atores, donde se conclui ser impossível fazer qualquer análise a respeito da dramaturgia do espetáculo. Como texto e cena não são coisas dissociáveis, isso também impede um exame mais detido da encenação, de modo que a crítica pudesse se posicionar em relação à seguinte questão: tamanha ambição virtuosística obteve, no geral, resultados satisfatórios?

Na impossibilidade de uma avaliação mais totalizante, é possível afirmar com segurança que um dos principais problemas do espetáculo está na movimentação dos núcleos em torno do ‘picadeiro’, feita de maneira pouco funcional e barulhenta, com os atores carregando os objetos de cena na hora de assumirem a posição subsequente da roda. Além da perda de dinamicidade e ritmo, o ruído provocado pela complicada movimentação interferia nas falas do narrador, ao que tudo indica importantes no tocante ao entrelaçamento das cenas. Para que tal procedimento funcionasse melhor, talvez fosse necessário que cada núcleo tivesse à sua disposição um praticável móvel (isto é, com rodinhas) servindo de cenário, algo que lhes permitiria realizar essa movimentação de um jeito mais harmônico.

De positivo, ressalte-se a qualidade de alguns atores do grupo, que souberam adentrar com competência no universo do santista Plínio Marcos, que se poderia definir, usando uma expressão consagrada pelo crítico literário Antonio Candido em outro contexto, de ‘realismo feroz’. É o suficiente para perceber que se trata de um grupo valoroso.

'Nepenthes', do Núcleo Antrópicos

O Núcleo Antrópicos apresentou a peça 'Nepenthes' no dia 4 de setembro, às 20 horas, no Teatro Guarany. A peça tem autoria de Tames Santos, direção coletiva e elenco formado por Carol Fog e Malu Câmara. Aliás, por que o Homem ocidental moderno considera-se superior às outras espécies do planeta? O que seria do Homem se outra espécie assumisse o topo da cadeia alimentar? Estas são algumas das questões apresentadas ao público em Nepenthes. De teor performático, a peça é inspirada no documentário “Reino das Plantas” da BBC e influenciada pelo perspectivismo ameríndio. Nepenthes é uma família de planta carnívora que se alimenta de insetos, pássaros e ratos, e não só dá nome a peça, como a cartografa para além de uma metáfora. Confira o depoimento de Carol Fog.

NARRATIVA

Primeiramente gostaríamos de esclarecer uma questão sobre a cisão entre “forma” e “conteúdo”, não só no teatro como nas artes em geral. Ultimamente, nós do Projeto Antrópicos, temos optado pela tentativa de não dissociá-las, e esta tentativa tem nos direcionado num caminho de aproximação estética com o conceito contemporâneo de teatro performativo. Em nossos trabalhos anteriores, alguns elementos da performance art vinham sendo introduzidos a algumas cenas, e percebemos que isto retirava delas as possibilidades de ilusão ou representação, trazendo à tona a ideia de “acontecimento” no teatro.

Em Nepenthes, esta introdução da “performatividade” na cena foi sendo ampliada, e acabou se tornando responsável diretamente por estruturar a peça, tornando-se assim seu ponto referencial. Porém, é impossível não destacar em Nepenthes um tema crítico traduzido em cenas, que é a atual crise ecológica global -consequência direta do modo de produção capitalista – e o papel do homem ocidental moderno nesta crise. Além disto, outras questões são exploradas e norteiam o espetáculo, como: por que existe o sentimento de superioridade da espécie humana, estabelecido pelo próprio Homem Ocidental Moderno, em relação aos outros seres na Natureza? E se os Homens modernos se veem como o ápice de inteligência racional nesta Natureza, como se tornaram tão indiferentes a ela?

No entanto, não temos a pretensão de levar uma resposta exata ao público, pois ele também atua, na medida em que é convidado subjetivamente/sensorialmente a encaminhar por si próprio o sentido daquilo que lhe é apresentado. Cabe ainda ressaltar que nos referenciamos brevemente no documentário “Reino das Plantas” da BBC e no “perspectivismo ameríndio”. Este último, em linhas gerais, nos parece detentor de uma percepção de mundo avessa do ocidente, sobretudo naquilo que diz respeito a nossa divisão moderna entre Natureza e Cultura. Por exemplo, para os povos indígenas da Amazônia, o universal não é a natureza, mas a cultura.

Do ponto de vista indígena, um animal é um humano e uma planta tem alma e reflexividade, pois conferem humanidade a tudo aquilo que nós, cientificamente, denominamos na Natureza como não-humanos. Nepenthes é uma família de planta carnívora que se alimenta de insetos, pássaros e ratos, e não só dá nome a peça, como a cartografa para além de uma metáfora.

DRAMATURGIA

Trabalhar com a performance no teatro pode ter um lado arriscado, que é o de não cumprir os objetivos visados antes da apresentação, de não afetar o espectador como o esperado, de não fazê-lo encaminhar sentido algum. A peça performativa geralmente independe da mimesis ou de uma ficção narrativa linear, ela existe devido a sua própria estrutura interna, que lhe traz sentido. Com a finalidade de não deixar que o espetáculo dependa unicamente das conciliações subjetivas do público, não descartamos por completo o uso do texto dramatúrgico, e através dele inscrevemos certa objetividade do tema com a(s) cena(s).

O texto dramatúrgico em Nepenthes é de nossa autoria, e o consideramos como mais um elemento cênico, o que não parece ser o suficiente para nos conferir exatamente o título de teatro pós-dramático. Articulamos, através do texto, o que temos chamado de “palestra cênica”, pelo seu caráter de discurso expositivo e não-dramático, onde são raras, por exemplo, nuances psicológicas daqueles que falam. Aliás, aqueles que falam diante do público, em diversos momentos se mostram enquanto artista, no seu devir, com seu corpo manipulável e livre nos seus fluxos desejantes. Já sobre o texto, a sua elaboração e pesquisa, mais especificamente, criamos uma espinha dorsal (começo/meio/fim) permeada por uma receita culinária atípica ou até mesmo nonsense, que é executada por um dos atores.

“Tudo é comida para alguma coisa”. Esta frase pode ser considerada o mote para a pesquisa textual em Nepenthes. Para alguns povos indígenas do baixo Amazonas, tudo come e tudo será comido. Nessa visão de mundo, nós também somos comida, e é através da comida (e logicamente de nós mesmos) que estabelecemos uma crítica direcionada ao tema, já esclarecido na pergunta anterior. A pesquisa para elaboração do texto envolveu ainda estudos em diversas áreas do conhecimento, como o documentário cientifico “Reino das Plantas” da BBC, o livro “De caçador a gourmet, uma História da gastronomia” do sociólogo Ariovaldo Franco, o artigo “Os Pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” de Eduardo Viveiros de Castro, e mais recentemente o ensaio literário “La Grande Bouffe”, de Lucia Garrido.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

Acreditamos que o nosso trabalho de pesquisa cênica é um trabalho de campo sempre em aberto, onde todos os integrantes do grupo assumem o processo criativo. Após praticamente um ano de inatividade do grupo devido às adaptações corriqueiras da vida numa nova cidade, podemos felizmente retomar as atividades da peça performativa Nepenthes. Nesses últimos 5 meses de (re)trabalho, algumas alterações foram feitas. Ou seja, uma parte da peça é inédita, uma parte da peça é reestreia. Gostaríamos de dizer que esta retomada se deu, sobretudo, após o contato com alguns grupos de teatro da cidade, como a “Trupe Olho da Rua” e “Os Panthanas”, que ocupam o espaço cultural Vila do Teatro.

Quanto à atuação, ao longo desses três anos de grupo, perseguimos uma desconstrução do que chamamos de “modus operandi” no Teatro Moderno, implicando na busca da invenção de novas formas de atuar. Percebemos que as diversas formas de atuação dadas por um Teatro Moderno tem se mostrado não tão eficazes em atender as expectativas e anseios da vida contemporânea, pois estão pautadas numa lógica do Homem Moderno e suas atribuições, e não no hibridismo do sujeito contemporâneo, nas suas complexas singularidades/multiplicidades.

CENÁRIO E FIGURINO

Tanto o cenário quanto o figurino foram escolhidos partindo do pressuposto de que as suas materialidades deviam compor um sincronismo com a ação performática dos atores. O cenário, por exemplo, é constituído de poucos objetos, mas que desempenham uma função plástica e ao mesmo tempo utilitarista nas cenas. Já o figurino transita do comum/cotidiano ao fantástico/místico.

Nephentes: Vale-tudo? Ou tudo vale à pena?

Por Bruno Fracchia

Com características de um Teatro Pós-Dramático, o Projeto Antrópicos apresentou no dia 4 de setembro, dentro da Mostra Regional do FESTA 57 Nephentes, um exercício cênico performático. O trio de perfomers se destaca no desenvolvimento de uma pesquisa defendida com coragem e vigor, mas que se enfraquece no momento em que a palavra é posta em cena. A expressividade de uma concepção cênica bem definida (recursos de vídeo e iluminação e ações de um teatro de agressão que remetem a determinadas práticas dos anos 70 responde pela unidade da linguagem adotada) não encontra eco nem na Palavra escrita (construída de acordo com modelos facilmente reconhecíveis), nem na Palavra falada. Ao lidar com o verbo, as atrizes perdem a oportunidade de elevar o texto a uma fala expressiva (o estudo do trabalho de atrizes como Júlia Varley, Maria Alice Vergueiro e Juliana Galdino podem acrescentar muito às performers).

Para este autor, escrever sobre Nephentes é conceber uma metacrítica. É que muitos aspectos além da análise estética precisam ser pontuados: é lícito valores ideológicos de um crítico servirem de parâmetro para suas impressões de uma obra? Pensamento estético e ideológico podem ser separados? Ao colocar em cena um peixe vivo e flertar com sua morte e exibir a cabeça de um porco, os perfomers não raciocinam da maneira como a dos homens ocidentais a quem dizem denunciar? Não seria este o caso de uma contradição entre Forma e Conteúdo?

Por fim, uma questão final: a peça se propõe a despertar a sensibilidade dos espectadores, empregando meios que apelam às sensações negativas (como vídeos e sons de violência contra animais). A utilização destas ferramentas levam às lágrimas alguns dos que se opõem às práticas cruéis denunciadas na apresentação. Mas sensibilidades realmente são despertadas. Os fins justificariam os meios?

Se esteticamente, o experimento atinge seus objetivos, eticamente, as escolhas não podem ser referendadas neste espaço crítico. A cabeça de um porco passando pela cena tende a chocar aqueles que, se não vegetarianos, pelo menos evitam comer carne de porco. Mas aos que com garfo e faca nas mãos se besuntam num leitão, o que pode surgir é apenas o lamento pelo desperdício de um suíno inteiro, impossibilitado de enfeitar uma mesa com uma maçã na boca.

Mas no fim das contas, lendo e relendo estas palavras, o crítico se pergunta: é lícito valores ideológicos de um crítico servirem de parâmetro para suas impressões de uma obra? Com a palavra, os leitores.

Quem come quem? A ancestral relação entre arte e vida no trabalho do Projeto Antrópicos 

Por Luiz Eduardo Frin

Aos poucos, o público presente no Tetro Guarany para assistir a apresentação do espetáculo Nephentes, criação do Projeto Antrópicos, acomoda-se sobre o palco e não nas cadeiras da plateia do teatro. No cenário um detalhe chama a atenção: um peixe ornamental nada em um aquário.

Assim, elemento central do trabalho do grupo já é apresentado. A proximidade com o público e a presença do peixe, ali, vivo, contribuem com o propósito de situar a apresentação em território fronteiriço entre a ficção e o que se costuma a chamar de realidade.

Como um cardápio, o espetáculo divide-se em “entrada, prato principal e sobremesa”. Estrutura metafórica encontrada pelo grupo para desenvolver os temas de Nephentes: Afinal, o homem ocidental moderno encontra-se, como acredita, no topo da cadeia alimentar? O quanto dessa percepção influencia seu comportamento e suas relações com o universo que o circunscreve? O modo de vida contemporâneo não inverte os papéis e transforma o homem, considerado o maior de predadores, em presa ao ponto de ser devorado por uma infinidade de atribulações e ansiedades? A escolha do nome do espetáculo, nesse aspecto, é muito significativa: Nepenthes é o nome dado a uma família de plantas carnívoras.

O questionamento dos limites entre ficção e realidade também se apresenta nas escolhas cênicas do grupo. O que mais se destaca é o objetivo de aproximar a apresentação teatral da chamada Performance Arte. Muito relacionada aos movimentos artísticos europeus de vanguarda do século XX e a experimentos cênicos que se destacaram na década de 1960, a Performance Arte tem, entre outros atributos, as idealizações do genuíno, de ser ater ao momento presente da apresentação, do improviso. Expedientes, via de regra, utilizados para impactar o espectador. No ideal da Performance Arte, o artista vive, não representa, e em casos extremados flagela seu próprio corpo e põe em risco sua vida.

É nessa difícil relação entre a representação e a chamada “performatividade” que surgem questões a serem destacadas. A impressão é que o grupo se impôs uma instigante equação que ainda trabalha para solucionar. Dessa maneira, o resultado apresentado muitas vezes carece de elementos que enriqueceria a representação, como o apuramento estético das cenas e um maior cuidado na elaboração e na elocução do texto. Por outro lado, mesmo com cenas impactantes, que cumprem o objetivo de chocar o público, uma certa radicalidade e um certo vigor esperados de apresentações performáticas ainda não foram alcançados.

'Meu Quintal é Maior do que o Mundo', do Teatro Wídia

No dia 5 de setembro, às 15h30, na Fonte do Sapo, o Teatro Wídia encenou gratuitamente o teatro 'Meu Quintal é Maior do que o Mundo'. Com dramaturgia de Manoel de Barros, direção e concepção cênica de Platão Capurro Filho e elenco formado pelos atores Diego Alencikas, Ernani Sequinel, Fabíola Moraes e Val Nascimento. Na peça, num quintal maior do que o mundo, quatro atores, crianças, jovens e adultos se encontram para brincar e fazer poesia onde o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê a obra de Manoel de Barros.

NARRATIVA

'Meu Quintal é maior do que o Mundo' é uma adaptação da Obra de Manoel de Barros – Memórias Inventadas. Fala sobre a infância e adolescência, as brincadeiras, a relação com a natureza e a descoberta da poesia nas coisas desimportantes. O olhar do mundo que temos quando criança e que perdemos a partir do momento que nos tornamos adultos. O Teatro Widia desde a sua criação pesquisa temas como a consciência ambiental, cidadania e memória voltados para a infância e juventude. A escolha foi porque a obra de Manoel de Barros sempre esteve presente na minha vida, sou pantaneiro e muita coisa que ele relata em sua obra eu vivi, conheço o quintal que ele tanto fala.

E também porque ele consegue mostrar em sua poesia, como a criança compreende o mundo quando está brincando, reinventando tempos e elementos paralelos aos da vida cotidiana. Ele recria o momento exato disso tudo. Brincar, fantasiar e inventar, experiências lúdicas que se tornaram enriquecedoras para as crianças. O que pretendemos passar é o que Manoel denuncia, a coisificação do homem pela sociedade desumanizadora, que precisa urgentemente ser repensada.

DRAMATURGIA

Quando foi decidido pelo Manoel de Barros e o foco na infância e juventude deu-se início a pesquisa. Leitura do livro Manoel de Barros – Poesia completa - nos deu um panorama do Manoel e decidimos focar nas Memórias Inventadas e alguns trechos de outras obras do poeta. Buscamos estudos acadêmicos sobre a poesia dele, estudos sobre as expressões linguísticas e cultura pantaneira como a música, e a viola de cocho. A dramaturgia começou a ser pensada já no primeiro dia de prática, após os estudos que nos fez compreender a metáfora de Barros, suas rupturas com os significados das palavras, frases fragmentadas, uns versos embaralhados, total falta de analogia entre as coisas.

Os primeiros exercícios dados para os atores foram as brincadeiras como forma de aquecimento, depois foi pedido o retorno à própria infância, por ligações com brincadeiras, objetos, histórias e causos que viessem à memória. Destacamos numa lousa nomes de bichos e expressões linguísticas. Cada ator contava sua historia de infância, apresentava seus objetos, suas brincadeiras. Começamos a separar as poesias em forma de roteiro e os exercícios de improvisação e criação de cenas a partir da poesia, ora utilizando apenas uma palavra, ora uma frase, ora um parágrafo. A dramaturgia foi surgindo a partir daí. Chamamos dois colaboradores Adriana Gianvecchio e Marcus Di Bello para nos auxiliarem na dramaturgia que estava sendo construída no decorrer dos exercícios.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

Iniciamos o trabalho em janeiro deste ano, na realidade a prática, pois os estudos se deram no segundo semestre de 2014. Fizemos o que chamamos de primeiro aprendimento em 31 de janeiro, depois os ensaios continuaram e fizemos o segundo aprendimento no final de março. Precisávamos saber como o público se comportaria a partir do momento que decidimos pela participação dele nas brincadeiras, na criação de poesias, enfim, fazer um espetáculo interativo. De lá pra cá continuamos ensaiando, paramos, retornamos, e agora vamos apresenta-lo.

Hoje em dia é muito difícil arrumar tempo para ensaios quando não se tem remuneração, as pessoas precisam comer, pagar contas, então se faz de acordo com as possibilidades. Eu agradeço muito a Diego Alencikas, Ernani Sequinel, Fabíola Moraes e Val Nascimento pelo processo que vivenciamos, são atores criativos, que realmente embarcaram na viagem. Carol Bezerra e Gilson de Melo Barros que se responsabilizaram pela direção musical e figurino, respectivamente. A Jamili Limma minha assistente e a Rodrigo Morales, produtor e fotógrafo do espetáculo. Acho que será sempre um espetáculo diferente porque teremos a participação do público. O improviso estará sempre no espetáculo, ele não tem limites, é um quintal maior do que o mundo.

CENOGRAFIA

O espetáculo foi pensado para rua, praça, parque, quadra. O cenário são esses espaços. Pensamos num figurino que trouxesse mais poesia e que se diferenciasse do público, mas com o andar da comitiva, isso foi deixado de lado. Os objetos são os mais simples, sempre dando importância as coisas desimportantes como a corda, o elástico, pernas de lata, bilboquê de lata, bolita (bolas de gude), bola de meia, carrinho de rolemã, cabo de vassoura, aro de roda de bicicleta, pedras, objetos que deixamos esquecidos dentro das gavetas, dos quartinhos.

REPERCUSSÃO

Foi muito bom, o público realmente participa do espetáculo, brinca com os atores, seguem as cenas. As crianças entram no jogo, interagem. Lembro de uma cena em que o ator sugere a mudança de uma brincadeira para a cabra cega, nos ensaios ele teria que ser a cabra cega para dar continuidade a poesia e por que achamos que ninguém iria querer ser a cabra, mas nesse dia um menino quis ser, a cena cresceu porque necessitou de improviso e ficou linda! Também o relato de um adulto dizendo que voltou no tempo e se viu brincando como outrora.

Teatro de Rua: o último espaço de verdadeiro congraçamento social 

Por Bruno Fracchia

Com Meu quintal é o maior do mundo, o Teatro Widia apresenta uma obra que une princípios do fazer teatral contemporâneo e práticas tradicionais do universo infantil. A síntese deste encontro surge na demonstração de força que a arte teatral é capaz de ter quando pensada – semelhante ao que os gregos faziam - como espaço social de congraçamento. Talvez o último que nos reste.

A montagem dialoga com a contemporaneidade na recusa a um espectador passivo e na comunicação do universo de Manoel de Barros principalmente de forma sensorial: a ausência de linearidade, os brinquedos artesanais e demais acessórios cênicos, as frases aparentemente sem encadeamento dramático e as pequenas unidades cênicas são alguns dos recursos utilizados neste sentido.

Uma nova relação é proposta ao público quando este é retirado de sua passividade habitual. A plateia se torna também atuante. Momentos líricos ocorrem com a presença de crianças que preenchem o espaço cênico “apenas” para brincar, não se importando se o que acontece é ou não teatro. Num quintal que é o maior do mundo, aos quatro intérpretes se unem tantas crianças quantos possíveis para ajudá-los a contar e cantar Manoel de Barros.

A escolha pela rua como espaço cênico é uma solicitação do conteúdo para que ele seja transmitido sem didatismo pueril (porque teatro que precisa se explicar em cena apresenta é confessa fragilidade em sua estrutura) e com coerência. As brincadeiras de rua e de quintal de casa envolvendo crianças e adultos marcam uma espécie de prólogo que instaura o ambiente cênico, contribuindo para que se inicie nos mais velhos um processo de despertar de memórias (“lembranças do tempo de eu, menino”, como diria Manoel de Barros). A opção pelo Teatro de Rua nesta montagem é um posicionamento estético, poético e político tão firmes que é difícil imaginar esta obra num espaço fechado sem que isso altere radicalmente sua significação artística.

Uma peça para todas as idades, que desperta e provoca inúmeras imagens. E de tantas, fica a de uma pequena menina: aprendendo a andar de skate, ela se cansa, escutar um barulho atrás dela e , ao se virar, enxerga crianças mais velhas pulando corda. Imediatamente hipnotizada, com autorização do pai, ruma a brincadeira, ainda que sem o desenvolvimento suficiente para praticar esta atividade. Mas não faz mal, afinal “a poesia e a verdade a gente aprende com as crianças” (Manoel de Barros).

O teatro é uma grande brincadeira

Por Luiz Eduardo Frin

Crianças e artistas do Teatro Widia brincavam na tarde do último sábado na Fonte do Sapo. Pulavam corda, jogavam cabra-cega, improvisavam brinquedos com latas e impregnavam de lúdico o espaço em frente ao mar. Assim, iniciou-se o espetáculo, experimento cênico seria uma melhor definição: Meu Quintal é o Maior do Mundo que apresentou ao público uma proposta interessante: Crianças e artistas não pararam de brincar e mesclavam aos jogos excertos da obra do poeta Manoel de Barros que nasceu em 1916 e faleceu em 2014. Na obra de Barros, muito influenciada pela sua relação com o Pantanal brasileiro, o homem, como criança, constantemente redescobre, renomeia e atribui novos significados à natureza e aos seus fenômenos.

A proposição, inicialmente, mostrou-se muito apropriada e fecunda devido ao caráter contundentemente lúdico da obra do poeta. Poesia e brincadeiras conviveram sem limites de tempo e nem de espaço (não havia uma clara delimitação da região cênica) e deliciaram adultos e crianças. A questão é que, a partir de um determinado momento, o expediente perdeu a sua força e ficou evidente a falta de estrutura espetacular melhor desenvolvida para que os participantes do instigante experimento continuassem a se envolver plenamente com ele e para que a potência da poesia de Manoel de Barros aflorasse em sua totalidade arrebatadora.

Tal dificuldade foi exacerbada por constantes falhas nos microfones dos intérpretes que em muitos momentos não foram ouvidos. Como certamente sabem os artistas do Teatro Widia, o fazer teatral na rua requer de seus realizadores uma qualidade de presença física capaz se sustentar energeticamente o contato com o público em espaços amplos e sujeitos a toda uma espécie de acontecimentos dispersivos da atenção dos espectadores, ou até mesmo, como no caso de Meu Quintal é o Maior do Mundo, dos participantes do jogo.

A não delimitação do espaço físico já contribuía para essa dispersão, mas, como escrito, fazia parte da proposta e se mostrou inicialmente muito interessante. Sentiu-se, mesmo, falta da utilização de expedientes cênicos que pudessem concentrar a atenção de todos e de uma melhor preparação, ou capacidade de percepção, dos atores e atrizes para que pudessem superar os imprevistos de ordem técnica. Entretanto, o Teatro Widia, ao persistir em sua pesquisa, pode chegar a resultados extremamente interessantes e que ressaltem a grande brincadeira que é o teatro.

'A Moça da Janela', da Cia Animalenda

A Cia Animalenda de Itanhaém encenou a peça 'A Moça da Janela', no dia 5 de setembro, às 16h30, na Fonte do Sapo. Com direção de Kely de Castro, no palco, ela divide a cena com Vinícius Camargo e Estela Carvalho. Na trama, o Moço do Correio tem cacoete de poeta, além de entregar cartas também gosta de escrever versos. Esse pobre moço sonhador se apaixonou pela Moça da Janela, que todos os dias espera ansiosamente por uma correspondência. Seria esse amor correspondido? E, afinal quem escrevia as tais cartas para a Moça?  É desta questão que surge o final surpreendente desta trama de amor e aventura.

NARRATIVA

O espetáculo a Moça da Janela conta a história do moço do correio, que nas suas jornadas de trabalho entregando correspondências se apoixona por um linda moça, a moça da janela. O espetáculo utiliza o teatro de bonecos e a música para contar uma história de amor no universo de um trabalhador brasileiro, tirando do seu cotidiano os elementos para um espetáculo com humor e poesia, com um desfecho surpreendente. Apoiando-se nas técnicas de teatro de bonecos, lidamos desde a questões ingênuas como a luta dos carteiros contra os cachorros que os perseguem como a greve, lidando também com os estereótipos da mulher nas relações amorosas ou as possibilidades de o amor acontecer a qualquer momento.

DRAMATURGIA

O roteiro base do espetáculo foi escrito por Kely de Castro e desenvolvido pelo grupo e é livremente inspirado numa canção de mesmo nome de autoria de Vinícius Camargo - membro do elenco - e Felipe Iszlay, poeta e parceiro de nosso grupo.É, em parte, inspirado nas linguagem do teatro de mamulengos e na música nordestina, mas também se utiliza de outras referências cênicas do teatro de bonecos contemporâneo e outros estilos musicais populares como o samba e até o reggae.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

O espetáculo foi desenvolvido a partir de 2011, nas oficinas oferecidas pela Cia Truks - da qual Kely de Castro, nossa diretora, fez parte por alguns anos - em seu projeto apoiado pela Lei de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo e teve orientação artística do diretor Henrique Sitchin. Basicamente é encenado a partir de uma atriz manipuladora de bonecos (Kely de Castro) e dois músicos atores (Vinícius Camargo e Estela Carvalho) que ficam fora da empanada, contracenando entre si e com os bonecos. Toca a música é tocada e cantada ao vivo pelo elenco.

CENOGRAFIA E FIGURINO

O espetáculo é pensado para a rua e espaços alternativos e utiliza como cenário apenas uma empanada, típica do teatro de mamulengo tradicional, embora sua estrutura seja adaptada e esconda algumas surpresas que se revelam durante o espetáculo. O figurino dialoga com as mesmas referências tradicionais da empanada.

REPERCUSSÃO

Qual foi a repercussão do público diante destas apresentações? Pode descrever alguma experiência que mais lhe marcou? Este espetáculo estreou em 2011 no projeto Bonecos nas Ruas, da Cia Truks em uma versão reduzida, com 15 minutos e dois atores. De 2012 em diante, já na sua forma atual, entre outros diversos locais, apresentamos, nas unidades do SESC Consolação, Taubaté, Santo Amaro (no dia das crianças) na Biblioteca Monteiro Lobato, no Festival Artes Vertentes - Tiradentes-MG e em 17 cidades do interior de São Paulo, através do Projeto Emcena Brasil, no ano de 2014. Neste mesmo projeto, este espetáculo foi apresentado também em Rio Verde-GO.

A relação das pessoas, tanto crianças quanto adultos, é o que mais nos marca. O encantamento, mais de uma vez, levou pessoas a conversarem longamente com os bonecos, e não com os atores, após o espetáculo e as crianças muitas vezes, embora estejam nos vendo claramente, conversam, convidam o boneco para ir às suas casas e até lhe oferecem comidaou suco. É sempre um grande prazer apresentar este trabalho e esperamos que no FESTA ocorra o mesmo.

Para as crianças, o politicamente correto, lúdico, poético, artístico, na beira do (a)mar

Por Simone Carleto

O dia 5 de setembro de 2015 foi o quinto dia do Festa 57 - Festival Santista de Teatro, organizado pelo Movimento Teatral da Baixada Santista -, e primeiro dia da programação que aconteceu na rua. Três espetáculos foram apresentados na Fonte do Sapo, na orla da praia do Gonzaga. Com a trégua da chuva praticamente ininterrupta todos os dias, a Cia. Animalenda, de Itanhaém, armou sua empanada toda singela de retalhos e adereços para o espetáculo 'A Moça da Janela’’. Estela Carvalho, Kely de Castro e Vinícius Camargo interagiram com o público, de crianças, jovens, adultos e idosos, durante todo o tempo, com a obra inspirada em canção homônima de Felipe Iszlay e Vinícius Camargo, que também assina a direção musical. A peça conta a história de amor entre um carteiro, o Moço do Correio e uma moradora do bairro em que ele entrega as cartas, a Moça da Janela.

Assim, tomando o ponto de vista do carteiro como argumento, o enredo se desenvolve em cinco dias, sinalizado por plaquetas, do mesmo modo como são apresentados outros tantos objetos característicos do teatro de animação, além dos bonecos de mamulengos, todos manipulados pela bonequeira Kely, enquanto Estela e Vinícius fazem a mediação com o público, sendo que este também o músico também tem a função de narrar algumas passagens, assim como as canções, executadas a partir de violão, triângulo, pandeiro e partes de garrafas plásticas que são utilizadas como instrumentos de sopro. Uma das canções, inclusive, acalenta a bela cena poética que descreve o sonho do carteiro: ‘Voei, voei, voei mais ela/Quem dera não fosse sonho/Quem dera!' Esta parte encantadora mostra nuvens, móbile de estrelas, balão com cesto e bonequinhos, além dos bonecos que representam o casal abraçados num voo, como se fossem pássaros.

Além das personagens citadas, aparecem, a cada dia em que o carteiro entrega uma carta (cartas estas escritas pela própria Moça, para que o Moço as viesse entregar diariamente), outras figuras compõem a narrativa e proporcionam certas peripécias ao Carteiro-Poeta. No primeiro dia, ele encontra um bêbado; no segundo o policial; no terceiro dia, que ele havia dito ser tranquilo, o público é surpreendido com um cachorro feroz, em cena bastante cômica; no quarto dia não havia mais cartas a serem entregues e os narradores/músicos buscam descobrir o que está ocorrendo e quem enviava as cartas, depois de discutirem entre eles e duelarem num repente bastante elaborado, a partir do mote:

'Quem será que escreve para ela/Quem será seu admirador/Quem será que ela espera/Quem será que há de ser o seu amor?' Hipóteses são levantadas com bonecos bidimensionais do padre, feirante, delegado, palhaço que se transforma em lobisomem, além de uma brincadeira com homem do público, finalizando a peleja. Depois disso, lança-se mão do recurso de abrir a janela feita na frente do anteparo, de onde saem miniaturas da sala da casa e a boneca da Moça, que antes estava representada apenas pelo desenho de uma casinha colocada na parte de cima da estrutura, caracterizando-se também em cenário, compondo com as montanhas e a praia ao fundo.

No que diz respeito à relação com as crianças do público durante a narrativa, a Cia. pode apropriar-se da referência do Mateus (figura fundamental ao desenrolar do espetáculo popular de mamulengos, desempenhada no grupo pelos músicos), no sentido de utilizar expedientes característicos da função. Assim, completa-se uma visão de mundo ideal, em que as crianças são incentivadas a lutar pelos sonhos, assim como os grupos da Baixada estão lutando pela importante lei de Fomento - a exemplo de São Paulo e algumas outras cidades -, tema da edição deste ano do festival.

‘A Moça da Janela’ propõe diversão inteligente à criançada

Por Rodrigo Morais Leite

Ao contrário do que talvez pressuponha o senso comum, obras artísticas voltadas às crianças não são necessariamente simplórias. Embora contenham, de acordo com cada arte, uma linguagem e uma técnica específicas, consideradas mais apropriadas para o diálogo com os pequenos, isso não significa que elas sejam esvaziadas de conteúdo político-social. Muitas de fato o são, ou porque seus criadores assim o desejaram ou porque simplesmente não acreditaram na capacidade cognitiva de seu público. Não é esse o caso, com certeza, de ‘A Moça da Janela’, espetáculo infantil produzido pelo grupo Animalenda, de Itanhaém.

Embora a dramaturgia da obra apresente um enredo de fato simples e ingênuo, a tratar do amor platônico de um carteiro-poeta pela moça do título, para que esse amor se realize são colocados uma série de obstáculos no caminho do enamorado, a partir dos quais a crítica social e política advém. Seja por meio da trama ou dos diálogos entre as personagens, temas como a violência policial no Brasil são levantados, ainda que, é claro, em uma chave cômica. Certos medalhões da vida pública brasileira, como Pelé, alguém tão caro à cidade de Santos, também não saem ilesos. A origem dessa mordacidade, um dos temperos do espetáculo, tem nome e sobrenome: o teatro de mamulengo, uma forma de teatro própria da cultura nordestina, caracterizada pelo uso de bonecos de mão (fantoches), pelo palquinho típico, conhecido como empanada, e pela carga de sagacidade que contém.

Tomando do mamulengo alguns elementos sem se restringir a ele, até porque a bonecaria utilizada em ‘A Moça da Janela’ vai além dos fantoches, a trupe de Itanhaém compôs um espetáculo muito interessante, valendo-se de bonecos e de música ao vivo, coisas inerentes ao mamulengo, mas também de poesias e até mesmo do teatro tradicional, isto é, com pessoas de carne e osso em cena. As canções, próprias do grupo ou pertencentes ao repertório comum, são executadas por dois atores-musicistas que, no decorrer da obra, comentam a fábula com as crianças, às vezes em forma de música, às vezes, não. Já os bonecos, quase todos representando personagens masculinas, são manipulados por uma mestre-bonequeira, algo ainda hoje relativamente raro e que não deixa de surpreender, devido ao fato de não ser fácil para quem é mulher criar uma voz ‘de homem’ que soe convincente, como é o caso.

Convidadas a se posicionarem diante dos infortúnios do carteiro-poeta, as crianças presentes à Fonte do Sapo não se fizeram de rogadas em nenhum momento, a ponto de, algumas vezes, invadirem o espaço destinado aos atores no intuito de interferirem na história, algo normal em espetáculos infantis mas cuja recorrência não deixa de ser um bom índice para aferir o quanto a criançada estava gostando do que assistia. Por tudo isso, ‘A Moça da Janela’ é uma obra que se poderia colocar naquela categoria chamada de ‘diversão inteligente’, que entretém sem abrir mão de uma certa dose de reflexão crítica. Isso não é pouca coisa.

‘Blitz’, da Trupe Olho da Rua

A Trupe Olho da Rua encenou 'Blitz', no dia 5 de setembro, à meia-noite, na Praça dos Andradas. A peça tem dramaturgia coletiva, direção de Caio Martinez Pacheco e elenco formado por Bruna Telly, Caio Martinez Pacheco, Fábio Piovan, João Paulo T. Pires, João Luiz Pereira Junior, Raquel Rollo, Sander Newton, Victor Fortes e Wendell Medeiros. Na trama, seguindo a ordem e o progresso nacional, nada mais (in)conveniente que passar por uma BLITZ ou ter seus direitos violados pelo Estado. A opressão que o brasileiro vive hoje nas ruas, seja em meio a manifestações ou indo comprar pão na esquina é levada de forma satírica e mordaz pelo grupo,seja suscitando a discussão sobre a desmilitarização da polícia e o exacerbado militarismo como resquício do período ditatorial ou como diria Brecht "um grande divertimento quanto aos tempos de barbárie".

Um espetáculo promissor

Por Rodrigo Morais Leite

‘Blitz’, criação coletiva da Trupe Olho da Rua, é um daqueles espetáculos contundentes, nos quais não há espaço para nuances ou meios-tons. Tudo o que nele se insere é expresso de maneira direta, sem retoques, deixando bem claro, desde as primeiras cenas, seu real objetivo: propor uma reflexão sobre a política de segurança pública do Brasil em geral e do Estado de São Paulo em particular. Para levá-la a efeito, o grupo santista não esconde nem por um minuto que seu principal alvo, embora não o único, é a polícia militar, entre outras coisas devido a seu caráter de polícia de choque, isto é, de enfrentamento.

Composto de várias cenas ‘independentes’, que não se interligam para compor uma história, ‘Blitz’ apresenta uma estrutura dramatúrgica próxima do chamado ‘teatro de revista’, gênero muito popular no passado e que consistia basicamente numa série de quadros intercalados de maneira algo aleatória, cujo propósito era sempre o de satirizar a vida pública. O crítico não sabe dizer se essa ligação é uma simples coincidência ou foi proposital. O fato é que, além da polícia militar, muitas pessoas públicas, quase sempre figurinhas carimbadas da mídia nativa, ‘comparecem’ no espetáculo de modo caricatural, como Glória Maria, Datena e Raquel Sheherazade.

Em se tratando de uma obra desprovida de nuances, ‘Blitz’ não faz nenhuma questão de esconder seu viés ideológico, claramente posicionado à esquerda no espectro político. Com efeito, as críticas nela embutidas estão ligadas a certas ‘bandeiras’ próprias de uma linha de pensamento mais progressista, que questiona, por exemplo, a política de encarceramento em vigência no país ou a maneira como a imprensa mais sensacionalista lida com o tema da violência urbana.

Cenicamente, tudo isso vem à tona por meio de uma gama rica de elementos, que vão das máscaras de animais usadas pelos atores até o andaime posto em cena para servir de guarita ou prisão. Recursos de intervenção direta no ambiente, como simular uma blitz no entorno da Praça dos Andradas, também são utilizados, sempre em uma chave cômica. O humor, aliás, é uma das qualidades do espetáculo, farto na utilização da ironia – ou, melhor seria dizer, do sarcasmo – para atingir seus alvos prediletos. Se se pode fazer uma ressalva a ‘Blitz’, esta diz respeito não à abordagem conferida à obra ou à sua estrutura, mas ao excesso de cenas, o que a torna prolixa e não contribui para a obtenção de uma maior organicidade.

Talvez pelo fato de ter sido concebida em um processo de criação coletiva, no qual todos os membros do grupo contribuíram com a proposição de cenas, a primeira apresentação de ‘Blitz’ demonstrou-se, ainda, um tanto carregada e caudalosa, às vezes se estendendo em demasia em alguns quadros, às vezes se perdendo um pouco nos momentos de interação com o público. Além desses problemas retirarem do espetáculo uma boa dose de ritmo e agilidade, eles também minimizam a virulência da crítica, que se perde no emaranhado de referências e sugestões.

Para que isso não aconteça novamente, seria necessário um trabalho de matização das cenas, ‘enxugando-as’ e montando-as de modo a cobrir os vácuos que ficaram à mostra. Quanto ao problema da participação do público, é algo que o tempo naturalmente corrigirá, na medida em que, tratando-se de uma estreia, os atores não tiveram a oportunidade de ‘ensaiar’ com ele. Uma vez ‘lapidado’, ‘Blitz’ se tornará, com certeza, o relâmpago expresso no título em sua acepção original.

Espetáculo-manifesto-intervenção ou a Comédia da Segurança

Por Simone Carleto

O espetáculo Blitz, da Trupe Olho da Rua, uma das companhias que fazem parte do Movimento Teatral da Baixada Santista, organizador do Festa 57, foi apresentado em 5 de setembro, sábado, já que no dia anterior, para o qual estava previsto na programação, houve chuva que impossibilitou a montagem. Em espaço aberto, desta vez na Praça dos Andradas, entre o Teatro Guarany e a Vila do Teatro, espaço de ocupação de grupos do Movimento, foram colocados os elementos que seriam utilizados em cena. Bonecos de tecido preto foram colocados como almofadas, formando uma semi-arena, convencionando o espaço de representação com andaime de um lado, instrumentos para a trilha sonora que seria executada ao vido do outro e, ao meio, arquivos e microfones que foram utilizados com funções diversas durante o espetáculo.

A palavra blitz deriva da palavra alemã blitzkrieg, que em português significa relâmpago. Assim, o espetáculo é iniciado com uma intervenção na avenida que ladeia a praça e a Vila, tendo como inspiração crítica formal esse tipo de abordagem repentina de fiscalização realizada pela(s) polícia(s). A temática abordada é a questão da (in)segurança pública, e de como ela é criada, tendo como ponto de vista a busca do estranhamento de procedimentos normatizados socialmente. Atores e atrizes com “roupa de guerra” assumem seu papel de sujeitos históricos na cidade de Santos, estado de São Paulo, Brasil, América Latina. Portanto, em condição periférica, tomam atitude bastante evidente no sentido de lutar por justiça social: 'Nossos mortos têm voz’.

No que diz respeito à temática, a obra trata da história da segurança pública no País, apresentando evidências de um estado que se configura burocrático, violento, com inúmeras contradições. Assim, é estabelecida narrativa em quadros independentes, que reiteram a ideia da presença do autoritarismo a das formas de coação dos indivíduos. A estrutura épica e tratamento cômico atribuem ao espetáculo a possibilidade de interlocução com o público e principalmente com jovens, que vivenciam a realidade das cidades (infelizmente, o que o Grupo retrata é bastante comum na maior parte delas). Desse modo, a Trupe utilizou recursos estruturais da linguagem midiática, como é o caso da televisão (programas de auditório, telejornais, programa infantil) e da mídia impressa (jornal, revista, cartazes), deflagrando discursos naturalizados, de modo absolutamente ácido.

Tomando a crise como elemento constitutivo do processo de decisão a partir da necessidade de transformação, a narrativa coloca em questão e em relação pressupostos ideológicos, como o enfoque da formação escolar e, por exemplo, a presença de atividades "culturais" a serviço da propagação de preconceitos e arbitrariedades. Para elaboração de argumentos coerentes que atribuam sentido para a atuação político-social, diversas situações são sobrepostas para que o público possa refletir. A frase 'Quem não vive para servir, não serve para viver’ é proferida pela personagem que apresenta um funcionário público. Este, distante da aquisição de consciência crítica, revela-se vítima do sistema, porém utiliza argumentos inculcados pela formação religiosa. A paz, defendida por Mahatma Gandhi, autor da frase citada, é termo banalizado na boca de muitos líderes governamentais, religiosos e civis da atualidade, como mais um produto de abstração, em que se lança ao vento uma pomba morta esperando que essa possa voar.

Expedientes do teatro popular e de outras linguagens artísticas são utilizados pela Trupe Olho da Rua para provocar o senso crítico em tempos sombrios como o que estamos vi-vendo. Alguns dos exemplos da criatividade do Grupo são: fábula da Chapeuzinho Vermelho adaptada e com a estrutura textual de boletim de ocorrência; comediante da “moda" com "piadas’' preconceituosas com relação aos trabalhadores; acompanhados de refrigerante de cola, coxinha e sensacionalismo. Além do grafite sendo feito simultaneamente ao espetáculo, nos tapumes em frente ao prédio histórico, chamando também a atenção para o espaço público que a comunidade espera ser reaberto. A ação cultural do coletivo se complementa com o bate-papo que aconteceu depois da apresentação, e que se caracteriza em parte fundamental do Festival, ligada à oportunidade de julgamento do público, parceiro essencial na busca de atitudes que possam alterar a (des)ordem social.

'Rua da Amargura', do Coletivo de Teatro de São Vicente

No dia 6 de setembro, às 18 horas, no Centro Cultural Braz Cubas, aconteceu o espetáculo 'Rua da Amargura', realizado pelo Coletivo de Artes de São Vicente. De autoria de Jobson Ricciardi, o teatro tem direção de Rodrigo Caesar, que contracena com Lucas Magalhães, Jair Moreira, Gustavo Roëmer, Anderson Avelino, Renato Primata, Damiana Albuquerque, Hugo Henrique, Danny Pereira e Oliver Souza. Na peça, um grupo circense chega à rua com muita vida, muitas cores e sons: eles contarão uma milenar história: a Paixão de Jesus Cristo. As fitas acompanham o figurino, um plano de fundo colore o cenário, máscaras personificam os personagens, realizando uma mistura de cores, formas e sons para apresentar tal história. Segue o depoimento de Lucas Magalhães.

NARRATIVA

O nosso espetáculo “Rua da Amargura” é oriundo do texto adaptado de Jobson Ricciardi, que aborda a história de Jesus Cristo desde seu nascimento até sua Paixão. Muitos perguntariam: por que querer representar tal temática se nem estamos no período da páscoa? É muito simples, a nossa motivação se deu no momento em que, durante uma breve conversa entre a equipe da direção e alguns atores, afirmamos que tal história é tão bela e tão cheia de riquezas que qualquer momento do ano pode ser representada (lembrando que o espetáculo existe desde 2007 e que sempre o fazemos durante o período da páscoa). Além disso, é um tema Universal e, levando-se em conta este texto, é extremamente poético e cheio de vida, cores e sons!

DRAMATURGIA

O texto original é o “Mártir do Calvário”, de Eduardo Garrido. O diretor do espetáculo, Rodrigo Caesar, ao identificar naquele texto um grande potencial de encenação dentro do universo circense, solicitou ao nosso autor, Jobson, que fizesse uma adaptação para este universo, ressaltando a importância textual, no que diz respeito, principalmente à linguagem poética do mesmo. Além disso, outras referências estiveram presentes durante o processo de produção textual, como os trabalhos de Veronica Tamaoki sobre o circo Nerino, seus Picolinos, pesquisas em materiais bibliográficos sobre outros circos, Vicente Celestino, etc..

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

O espetáculo acontece desde 2007, como já mencionado, e vem sofrendo transformações (tanto textuais como cênicas) desde então. Na etapa de 2015, em especial, além dos elementos circenses que compõem a encenação (palhaços, malabaristas, a mulher barbada, entre outros), a caracterização dos personagens se deu através da commedia dell’arte. É válido colocar que o circo bebeu e muito na fonte da commedia, e é sobr isso que nos mantivemos firmes para elaboração do corpo das personagens e, principalmente, para a elaboração das máscaras das mesmas que compõem modéstia parte, lindamente o nosso espetáculo. Avaliando o processo, devo dizer que, inicialmente, compreender a commedia em consonância com o melodrama circense foi difícil para todos, mas aos poucos, diante de intensas pesquisas e ensaios bastante produtivos, conseguimos encontrar muitos “denominadores comuns” que se evidenciam durante o espetáculo.

CENOGRAFIA E FIGURINOS

O cenário é um picadeiro de circo, identificado por uma cortina de retalhos que caracteriza a entrada e saída de cena e três cubos móveis que servem para enaltecer as personagens durante suas ações. Além disso, há tapetes coloridos delimitando a semi-arena e que ajudam a compor, por exemplo, a via sacra. Os figurinos foram customizados pelos atores, que compuseram suas indumentárias de acordo com os personagens do circo que interpretarão. Além disso, cada personagem do circo é, também, um personagem da Paixão de Cristo, o que caracteriza tal mudança são as máscaras já citadas.

REPERCUSSÃO

Desde 2007, as transformações foram muitas e muito nos marcou. Nós já fizemos este espetáculo de forma itinerante, por exemplo, e anualmente o autor modificava o texto para aperfeiçoarmos a montagem. Chegamos ao que queríamos ano passado, mas creio que o ponto mais alto de nossa evolução foi em 2015. A inclusão da linguagem melodramática do Circo por meio dos personagens circenses assim como a elaboração do universo da commedia na interpretação enriqueceu fortemente o espetáculo.

Em algumas apresentações neste ano, inclusive, pudemos observar que o espetáculo tem uma linguagem tão leve (embora, ao mesmo tempo, rica em poesia e em história), que levou às crianças um olhar mais tênue. Além disso, com muita música, alegria e cores, contamos a história de Jesus Cristo (uma história triste, mas que tem um final feliz) de uma forma bastante distinta: é o circo que chegou à cidade e representará a Paixão deste personagem da história. Muitos espectadores nos disseram: “Eu me emocionei com o espetáculo. Chorei e ri na mesma intensidade”. E é por isso que este espetáculo não pode parar!

Em busca de uma linguagem

Por Bruno Fracchia

A partir de releitura de O Martir do Calvário, de Eduardo Garrido, e com músicas de uma leitura do Grupo Galpão de Belo Horizonte para este texto, artistas de grupos teatrais de São Vicente se reuniram para a encenação de uma versão local de A Rua da Amargura, apresentada dentro da programação do FESTA57. Escrito em 1902, o drama de Garrido abordando a vida de Jesus Cristo foi representação corrente de companhias de circo-teatro no Brasil nas primeiras décadas do século XX. Como não há conhecimento para afirmar se estas montagens seguiam uma estética clownesca, ao ver palhaços em cena e máscaras que remetem à Commedia dell´Arte, impossível não pensar pelo menos no trabalho do já citado grupo mineiro. Assim, o primeiro grande desafio dos artistas vicentinos é a busca por uma assinatura que não reduza a criação a uma amálgama de obras já realizadas. Se a falta de uma identidade própria não for considerada um problema, a questão passar a ser o porquê de no teatro de hoje se optar pelo caminho da reprodução? E de que forma ela pode dialogar com o público sem se tornar um documento histórico?

Ao adentrar o caminho da encenação da Paixão de Cristo pela ótica circense, o Coletivo de Artes de São Vicente faz por merecer saudação pelo interesse em levar à cena a linguagem do circo-teatro. No entanto, como já se suspeitava a partir da sinopse de divulgação que consta no Guia oficial do FESTA (repleta de repetição de palavras, entre elas um mesmo pronome indefinido, comunicando falta de precisão na forma de apresentar o trabalho), a montagem carece de rigor artístico, de pesquisa sobre circo-teatro e também sobre o signo no teatro.

Não basta um nariz vermelho ou uma máscara que remeta a Commedia dell´Arte para que o público veja em cena outra personalidade que não a o próprio ator. Máscara não é um acessório que esconde, mas que revela o intérprete em sua totalidade. É preciso cuidado.

Que o circo-teatro continue sendo alvo de estudo deste coletivo de artistas. O caminho para a excelência é grande, mas trabalhos como o da Companhia OS Fofos Encenam e do Barracão Teatro podem ser o oxigênio necessário para o desenvolvimento das pesquisas e de técnicas de interpretação aos esforçados atores desta montagem. Dedicação e vontade de aprender todos tem. E isso é fundamental.

Rua da Amargura: Para frente

Por Luiz Eduardo Frin

Os chamados autos são realizações teatrais de cunho religioso com origem associada ao processo de expansão do cristianismo na Idade Média. À época, sobre carroças, ou utilizando-se da própria geografia como cenário natural para ambientação das peças, passagens bíblicas eram representadas. Assim, iniciou-se uma tradição que chega até aos nossos dias: O Auto da Paixão, no qual a vida, o sacrifício e a morte de Cristo são representados é anualmente levado à cena por ocasião das celebrações da Semana Santa em diversos países de tradição cristã.

No Brasil, a tradição dos autos encontrou-se com a do circo no início do século XX, quando arte circense, prioritariamente corporal e pantomímica, absorveu a palavra e o drama foi incorporado ao espetáculo. Assim, de acordo com a tradição cristã do País, o Auto da Paixão tornou-se importante item do repertório do denominado circo-teatro.

Foi justamente um espetáculo inspirado em um Auto da Paixão nos moldes do circo-teatro que o Coletivo de Artes de São Vicente trouxe para o Festa 57 quando apresentou o seu Rua da Amargura. Aliás, A Rua da Amargura – 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus é o nome espetáculo dirigido por Gabriel Villela para o Grupo Galpão, que estreou em 1994. Na página do programa do Festa 57 destinada ao Coletivo de Artes de São Vicente, não há a informação se o espetáculo apresentado pelo grupo baseou-se ou relacionou-se de alguma maneira com o trabalho do Galpão, consta apenas que a autoria é de Jobson Ricciardi e a direção de Rodrigo Caesar.

A despeito do empenho do grupo, a apresentação mostrou-se repleta de problemas com a realização de encenação que, ao sobrepor indiscriminadamente pressupostos cênicos diversos, mostrou-se carregada e autocentrada. Assim, perdeu-se em si mesma com prejuízos na relação entre artistas e público. Ao não fazer escolhas e ao não optar pela síntese, a direção expôs a fragilidade técnica dos intérpretes, como ficou evidente na parte musical do espetáculo.

A música, assim como o humor, é elemento essencial do teatro popular e entende-se a opção do grupo em coloca-la como elemento central de sua encenação. Mas, também aqui, faltou a sensibilidade de se evitar a execução de arranjos que não se mostraram compatíveis com o momento do aprimoramento técnico do grupo. Tal falta de sensibilidade, aliada com dificuldades técnicas com os microfones, foi responsável por momentos, evitáveis, que causaram certo constrangimento.

A ideia em apresentar esses problemas é auxiliar na reflexão do grupo acerca dos caminhos que certamente irá, e deve seguir. Também é de reiterar a máxima que em teatro, como em muitos aspectos da vida, o “menos” é, muitas vezes, o “mais”, e que a capacidade de fazer escolhas precisas caminha ao lado do aprimoramento que devemos buscar. Vida longa ao Coletivo de Artes de São Vicente!

'Projeto Bispo - Tratados como Bichos, comportam-se como Um'

A peça 'Projeto Bispo' foi encenada pel'O Coletivo no dia 6 de setembro, às 21 horas, na Casa da Frontaria Azulejada. Com dramaturgia de Junior Texaco e direção de Kadu Veríssimo, o teatro tem no elenco: Junior Brassalotti, Juliana Sucila, Renata Carvalho, Carolina Stahnke, Rafael de Souza, Wendell Medeiros,Malvina Costa, Sérgio Bratz, Vidah Santos, Juliana Damazio e Zécarlos Gomes. O traça um panorama que conduz a uma imersão na perspectiva do excluído e um mergulho no labirinto do artista.

Onde o passado e o presente se fundem, assim como elementos da religião, do simbólico e questões sociais que se apresentam como um pano de fundo onde a realidade e a ficção se misturam.  O enredo utiliza a dicotomia loucura/liberdade, num sentido metafórico. A impermanência das coisas se estabelece como a própria estrutura dramatúrgica, em que os atores continuamente desconstroem uma realidade cênica para construir outra, criando uma atmosfera dual entre loucura e prisão, arte e liberdade de expressão.

'O Coletivo' afirma o teatro contemporâneo produzido em Santos

Por Simone Carleto

Domingo, véspera de feriado, e o fluxo de pessoas aumentou consideravelmente na cidade. O Centro Histórico, porém, provavelmente estaria deserto, não fosse a efervescência causada pela realização do Festival Santista de Teatro no período. Às 21h, mais de cem pessoas juntavam-se na Praça Mauá, em frente à sede da Prefeitura local, para assistir ao espetáculo 'Projeto Bispo’, d’O Coletivo’. Constituído por integrantes de diversos outros grupos da Baixada, o agru-pamento deu-se em torno de desejos criativos comuns. Assim, surgiu a obra processional (aquela em que o público acompanha as cenas, apresentadas em forma de estações, como em uma procissão), apresentada em deambulação pelo Centro da cidade.

Totalmente relacionado às questões contemporâneas da sociedade e do teatro, o espetáculo dividi-se estruturalmente em duas partes. A primeira trata-se de uma série de intervenções ur-banas, bastante consequentes, chamando a atenção para a vivência que parte da população tem nesse território, já que circunstanciado histórica e culturalmente. A segunda parte tem início quando se chega à Casa da Frontaria Azulejada, imóvel antigo que tem abrigado, nos dias do Festival, uma série de experimentos teatrais. Neste espaço, provocam-se sensações e reflexões, a partir da criação de inúmeras imagens-instalações contundentes, que revelam facetas da relação humana com a loucura, confinamento e barbárie. Ambas, juntas, configuram um potente e violento mani-festo pela vida, ancorado em questões objetivas constitutivas do direito à vida pública.

Com caráter épico, a visceralidade impressa torna a atuação condizente com a temática e forma escolhida pelos atores e atrizes, que demonstram no corpo a compreensão das atitudes im-petuosas e radicais de suas performances. O aspecto performativo configura-se como determinante da proposta relacional do espetáculo, que, sobretudo na segunda parte, inclui o público como internos de um possível hospício, em que o aparente controle não apaga o caráter instintivo e animalesco de nossa espécie. Cada pessoa podia perceber de um modo o que estava proposto. Colocar-se em muitos lugares e possibilidades de onde ver as cenas, imagens, sombras, perspectivas.

A ocupação do espaço com instalações artísticas, parangolés, desenhos dos próprios corpos a se movimentarem entre as colunas da arquitetura evidenciada pela obra, representa uma das tantas dramaturgias possíveis de serem tecidas pelo público. Ao final, os artistas saem para a rua, encerrando no espaço o público, como se estivesse internado a partir dali. E como duvidar de que, de fato, estamos presos ao sistema e condicionados, considerando-nos livres e pós-modernos, talvez confinados em aplicativos e (en)redes 'sociais'?

'Os Desclassificados', do Núcleo Os Panthanas

No dia 9 de setembro, às 16 horas, Os Panthanas – Núcleo de Pathifarias Circenses de Santos encenou 'Os Desclassificados', na escadaria do Monte Serrat. Fruto de criação coletiva de Sidney Herzog, Junior Brassalotti e Pablo Bailoni, a peça conta a história de três palhaços em busca de um emprego e de melhores condições de vida no mundo de hoje. As confusões criadas por eles, sempre contam com o público como elemento participante, discutindo as questões da valorização dos profissionais do riso e da precarização do mercado de trabalho. Repleto de números de variedades, técnicas circenses, música e muito humor, este é um espetáculo que tem como raiz o teatro de rua e a cultura popular. Com linguagem e técnicas circenses clássicas ele é concebido para apresentações nos mais diferentes espaços. Segue o depoimento de Junior Brassalotti.

NARRATIVA

Os desclassificados do grupo Os Panthanas trata da questão do desemprego e da precarização do mercado de trabalho, em especial dos palhaços. Queremos, através do riso levar nossa reflexão acerca do tema e ver como isso reflete no retorno do público, pois nos parece um problema  que tem atingido muita gente.

DRAMATURGIA

Usamos referências literárias e teatrais para a construção da dramaturgia, mas como ele é pensado mais num roteiro para deixar o jogo aberto para improvisos. Usamos a base de muitas esquetes tradicionais de circo como guia condutor da histórias as vezes. Tudo no espetáculo foi construído de forma coletiva.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

Ensaiamos de três a quatro vezes por semana, fora os encontros do grupo para trabalhos extras, projetos nos quais estamos envolvidos, como o Curta Santos, as oficinas de circo na Vila do Teatro, etc. A convivência em grupo acaba dando o tom da cena também.

CENOGRAFIA

Trabalhamos com três atores em cena, mambembes, três malas e poucos adereços, pois eles são herdeiros dos saltimbancos, viajantes que vão de praça em praça levando seu circo itinerante.

REPERCUSSÃO

Já estreamos, foi um público ótimo no Guarujá, a parte marcante foram as "moedadas" que tomamos na testa quando fomos passar o chapéu! Foi ótimo!

Sem classe e ‘ficação', bufões ‘causam' na Praça dos Andradas

Por Simone Carleto

O Festa 57 teve, no dia 9 de setembro, data do encerramento da edição 2015, uma série de atividades, entre elas, 'Os Desclassificados’, de Os Panthanas - Núcleo de Pathifarias Circenses de Santos. Formado a partir de experiência vivida como aprendizes na Escola Livre de Circo da Oficina Cultural Pagu - outro tipo de política pública fundamental, juntamente com os programas de Fomento -, o grupo propõe como tema as condições de sobrevivência na sociedade atual. Como proposição estética, apresentam um espetáculo de variedades, inspirado no universo circense e, portanto, da cultura popular. O espetáculo estava previsto na programação do dia 7, às 16h, quando choveu muito e a apresentação na escadaria Monte Serrat foi impossibilitada. Assim, foi transferido para a última quarta-feira do Festival, na Praça dos Andradas, às 19h, em frente à Vila do Teatro, local ocupado por este e outros coletivo do Movimento Teatral da Baixada Santista.

As opções pelo teatro de rua ou mesmo teatro na rua, pressupõem uma certa disponibilidade ao diálogo e estabelecimento de parceria com o público. Desse modo, os palhaços Chevete, Fuxico e Xaveco iniciaram a sessão circense com a apresentação de cada um para o respeitável público. Todo o espetáculo é pensado como um circo, em que os três revezam-se nas funções de mestre de cerimônias, músicos e acrobatas, como desejável na tradição dos palhaços. O roteiro criado como argumento para as demonstrações de habilidades circenses teve como mote a questão do emprego e do trabalho. Desse modo, os palhaços argumentam a respeito de estarem desempregados, sem dinheiro e, portanto, com fome.

Com inúmeras tiradas rizíveis durante as esquetes, o trio improvisou bastante a partir das reações do público. Parodiando uma série de situações cotidianas e do universo dos trabalhadores da arte e da cultura, os bufões fizeram esquete da dívida, número do chicote, malabarismo, sempre ambientando as gags à realidade de Santos, além de citar as políticas estadual e nacional. A execução dos números pode ser aprimorada, bem como a execução da música ao vivo, conferindo ao roteiro proposto agilidade e destreza, o que inclui a preparação vocal própria para o ofício com as características citadas.

O grupo, que se assume como saltimbanco, estreou o espetáculo no Festival, conseguindo atingir o ponto máximo da paródia, com referência a um dos filmes de animação da moda no circuito comercial infantil, em que o público riu muito, dada a ridicularização das personagens. Nesse clima, sempre trazendo à tona o senso crítico, o que de certo modo aponta para uma produção local bastante significativa em Santos, com abordagens estéticas múltiplas, seguiram as outras apresentações e atividades, no dia em que a chuva fez trégua para a manifestação do riso em praça pública.

A alegre seriedade dos palhaços

Por Luiz Eduardo Frin

Na praça dos Andradas, na noite da última quarta-feira 09 de setembro, um clima de despedida no ar. Afinal, aproximava-se o fim do Festa 57 que durante dias ocupou ruas, praças, centros culturais e teatros de Santos com uma produção teatral eclética e diversificada. A despedida, o friozinho que fazia depois de dias de chuva, as luzes amareladas da praça, as cadeiras e os bancos que improvisavam uma plateia frente ao local da apresentação deixavam sensação de passado; certo ar nostálgico para a apresentação de Os Desclassificados, do grupo Os Panthanas.

Atmosfera muito bem aproveitada pelos três atores do grupo. Três palhaços que com calma, elegância e segurança conduziram ao público, predominantemente de adultos, muito mais do que para o tempo de infância, para o ancestral tempo da fantasia do circo. Tudo para abordar tema atual e concernente a muitos, senão a todos que ali estavam frente à apresentação. A inadequação frente às exigências da sociedade capitalista contemporânea. O problema das personagens, com humor transformado em arte, era o de não conseguirem seus sustentos a partir de suas reais vocações: A de serem palhaços.

Então, a tentativa de conseguir algum dinheiro era o mote para que o público fosse brindado por situações hilárias. Desse modo, como bonecos de posto, animadores de festas infantis, grupo de axé music, entre outras tentativas de aproximações permitidas pelo seu real talento, Os Panthanas realizavam clássicos números circenses. A ressaltar, a verdadeira ciranda financeira invertida representa pelo grupo em momento em que a crítica social foi apresentada com inteligência, graça e elegância. A cena, inversamente proporcional à realidade, mostrou como uma simples nota de dois foi capaz de liquidar dívidas entre os três palhaços que somadas, estava na casa de mais de uma dezena de reais.

Em resumo, a apresentação de Os Panthanas, com despretensão e simplicidade, levou o público a refletir sobre o frequente estado de interdição legado ao homem contemporâneo por sociedade regida a partir de preceitos mercantis. E com isso, vidas passam e não se realizam em sua plenitude ao se contentarem com aproximações, com sobras do sistema. Tema relevante, de difícil apresentação e assimilação. Mas, Os Panthanas deram o seu recado com primor técnico e muito humor. Para concluir, passo a palavra a quem realmente importa quando o que está em pauta é a realização de um espetáculo popular realizado na rua. Termina-se, então, essa leitura crítica com a manifestação de uma senhora do público que, logo ao final da apresentação, bradou a plenos pulmões: Muito bom!

'Essa Partida Não Será Televisionada', da Cia Elefante/Tescom

A peça 'Essa Partida Não Será Televisionada' foi encenada pela Cia do Elefante/Tescom no dia 8 de setembro, às 16 horas, no Centro Cultural Braz Cubas. Fruto de criação coletiva, a peça tem direção de Marcus Di Bello e elenco formado por Alessandra Santana, Alex Lopes, Felippe Alves, Flávia Simões, Jamili Limma e Kaylane Souza. "Esta Partida Não Será Televisionada" é uma criação coletiva da Companhia do Elefante, grupo formado por alunos e professores da TESCOM Escola de Teatro. A peça estreou no final de 2013 e continua em constante processo de reestudo e ressignificação. O espetáculo traça um paralelo entre o futebol e o dia a dia do cidadão, expondo questões sociais e fazendo apontamentos ao processo de mercantilização que o esporte mais popular do país vem sofrendo. Confira o relato de Marcus Di Bello.

NARRATIVA

O espetáculo, dividido como uma partida de futebol (aquecimento, primeiro tempo, intervalo, segundo tempo, prorrogação e disputa por pênaltis), busca investigar a relação do esporte mais popular do país com questões cotidianas da nossa sociedade, expondo temas como cerceamento de direitos, acesso à cidade, igualdade de gênero e mercantilização do futebol. Entendemos "partida" como ação/luta, e por isso ela não será televisionada, pois acontece na rua, nos espaços públicos, nas redes, nos diversos movimentos que surgem diariamente e que estão espalhados pelas várzeas do país.

A escolha de por esse tipo de pesquisa parte da nossa vontade de estudar as possibilidades de relação entre atrizes/atores e público. Aos poucos o espetáculo foi se tornando um posicionamento social, mas ainda nos sentimos engatinhando dentro da pesquisa. A proposta de realizar um espetáculo que pode se modificar a cada nova apresentação vai ao encontro do nosso desejo de discutir a sociedade, que também se modifica a cada instante.

DRAMATURGIA

O processo de pesquisa teve início em junho de 2013, um pouco antes das Jornadas de Junho, que provocou o surgimento de um novo sistema de ação social em nosso país. Importante lembrar que faltava um ano para a Copa do Mundo acontecer. Sentíamos a necessidade de estudar e propor esse jogo na rua, discutir sobre o direito à cidade, investigar a nossa relação com os espaços públicos e com os espectadores. A dramaturgia do espetáculo se modifica a cada novo encontro, a cada nova proposta, a cada nova possibilidade de questionar e apontar.

Bebemos de diversas referências, mas não enquadramos o espetáculo em nenhuma delas. No processo de criação e no jogo que propomos na rua tudo é permitido. O que servir para potencializar a nossa relação com o público é bem vindo. Sofremos influência de grupos que também trabalham com processos de pesquisa, pois acreditamos nesse tipo de teatro.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

Do início do processo de pesquisa (junho/2013) até a estreia (novembro/2013) foram cinco meses. De lá pra cá são quase dois anos. Conversamos depois de cada apresentação na tentativa de compreender como o jogo teatral se estabeleceu naquele dia. Nos encontramos uma vez por semana e mantemos vivo o processo de elaboração, pois não pretendemos finalizar a pesquisa.

Cada atriz e ator possui uma formação diferente, por isso a nossa busca é pela compreensão da sintonia do grupo, tentando encontrar qual é o ritmo da respiração que a dinâmica do espetáculo traz em sua proposta de dramaturgia. Em muitos momentos, durante os ensaios, a direção se torna coletiva também, tornando o processo horizontal.

REPERCUSSÃO

A relação com o público é o que há de mais importante no teatro, dentro da nossa compreensão. Não é apenas o lugar de onde se vê, mas o lugar onde acontece o encontro, que só é possível a partir da doação dos artistas e do público presentes no ato teatral. Pensar no teatro dessa forma é fascinante, pois percebemos que o teatro só existe quando pessoas interessadas se reúnem para dividir e compartilhar seus tempos, suas atenções, seus corpos, suas indagações. E depois o teatro desaparece, restando apenas em nossas memórias, mas modificando intensamente a nossa forma de experimentar o mundo ao redor.

O público é um dos nossos focos dentro dessa pesquisa, então buscamos percebê-lo dentro de sua diversidade e dentro das subjetividades de cada indivíduo. Quando o espetáculo acaba, nos colocamos abertos ao diálogo, pois as impressões de quem compartilhou aquele momento conosco é essencial.

Parece, mas não é: qualquer semelhança não é mera coincidência

Por Simone Carleto

Chovia muito na terça-feira pós-feriado de 7 de setembro. Mais um dia de chuva em que seguia a programação do Festa 57 na cidade de Santos. Naquela tarde, a peça 'Essa partida não será televisionada'', da Cia. do Elefante - Tescom, seria apresentada no espaço anexo ao Teatro Municipal, numa área térrea com vista para a avenida em frente. Apesar de o clima ter prejudicado a presença do público, aproximadamente trinta pessoas chegaram para assistir ao grupo, que se preparava animada e coletivamente para o início do espetáculo. A primeira informação a chamar a atenção é a semelhança do título com o documentário irlandês de 2003, 'A revolução não será televisionada’, que trata das manobras golpistas, com apoio midiático, para derrubar o governo da Venezuela. Bastante crítico, o filme revela cenas reais editadas e manipuladas, que invertiam totalmente os fatos. Assim, representa um documento histórico para comprovar os desmandos de um sistema perverso.No caso do trabalho da Cia., a sinopse sinaliza para uma narrativa em que o futebol se apresenta como estrutura e tema, o que, na programação do Festival não pode ser conferido. Tanto no que se refere ao tema quanto à forma, a proposta é igualmente abandonada durante a encenação.

A peça é iniciada com anúncio de aquecimento, o que de fato já aconteceu aos olhos do público. Depois, é anunciado o fim do primeiro tempo e, em seguida, há um intervalo com diálogo com o público, em que são buscados os melhores momentos da vida pessoal, conforme primeira revelação de um dos atores/uma das atrizes. Na sequência, é encenado um intervalo, com a conhecida - para aqueles que frequentam estádios ou assistem pela televisão -, venda de produtos. Para tanto, é apresentada uma vendedora, uma pessoa “do povo”, trazida para a cena de modo caricato. Para representá-la, a atriz articula a palavra produto como “poduto”. Esse tipo de abordagem, apesar de haver uma narração durante a ‘partida' que afirma ‘A Cia. do Elefante é contra qualquer tipo de preconceito’, é presente do início ao fim do espetáculo, com outras incoerências.

A temática futebolística é também deixada de lado após o referido intervalo e o início do segundo tempo. Na tentativa de defender pontos de vista contra a televisão, a favor da mulher e da justiça, são utilizadas ‘jogadas’ fora do rol de passes do futebol-arte. Desse modo, ao mesmo tempo em que questiona o papel de emissoras de televisão (sem discutir a função social do meio de comunicação), a montagem reforça a linguagem televisiva, assim como seus recursos apelativos. Uma das questões a ser repensada, do ponto de vista relacional, é a forma de envolver e convocar o público para ‘entrar em campo’. Pessoas do público foram chamadas para concorrer a um brinde ao demonstrar habilidade com a bola. A vencedora acabou numa espécie de armadilha, que a colocou como vendedora de ingressos falsos, pelo que foi condenada, espantosamente (!) sem provas. Dizia Bertolt Brecht: ‘Aprenda o mais simples! Para aqueles cuja hora chegou/Nunca é tarde demais! Aprenda o ABC; não basta, mas aprenda! Não desanime! Comece! É preciso saber tudo! Você tem que assumir o comando’.

‘Os Sapatos que Deixei pelo Caminho’, do Teatro do Kaos

O Teatro do Kaos encenou 'Os Sapatos que Deixei pelo Caminho' no dia 9 de setembro, às 20 horas, no Teatro Guarany. A peça tem autoria de Cícero Gilmar Lopes, direção de Marcos Felipe e elenco formado por Camila Sandes, Diego Saraiva, Fabiano Di Melo, Levi Tavares e Lourimar Vieira. O teatro navega no campo da performance para contar a história de Poim. Atos performáticos alinham a narrativa do espetáculo, lançando mão de expoentes musicais, do teatro de bonecos, da dança e do cinema, a pesquisa é caracterizada pelo excesso de informação. Maneiras e linguagens múltiplas para se contar uma história. Os poucos textos verbais são ditos de maneira épica, estabelecendo assim uma mistura de comunicação direta com o público e a resignificação (através da performance) para elementos cotidianos.

Uma história do nosso tempo

Por Luiz Eduardo Frin

Ao entrar no Teatro Guarany na noite da última quarta-feira, 09 de setembro, para mais um dos espetáculos do Festa 57, o público ficou frente à atriz Camila Sandes que dublava Janis Joplin com requintes técnicos de perfeição e interpretação inspirada. A espécie de prólogo foi absolutamente coerente em sua proposição de situar o espectador para o que viria a seguir. Que era aquela figura? Uma personagem que, em ficção, cantava? Uma atriz que, na realidade, dublava? Uma transexual? Uma prostituta? Enfim, a cena inseriu poeticamente o público no espetáculo. Jogo que sobrepôs fatos e versões no qual real e simbólico mesclaram-se em recortes temporais, também, sobrepostos.

Assim, por intermédio de uma narrativa fragmentada, o público comungou o universo de Poim – Lourimar Vieira – Fundador do Teatro do Kaos, idealizador do argumento e também ator do espetáculo Os Sapatos que Deixei pelo Caminho. Expedientes da teatralidade contemporânea correram soltos pelo palco e pela plateia. Entre eles estavam o hibridismo de linguagens, a tentativa de romper barreiras entre ficção e realidade, a valorização do simbolismo, a utilização de relatos feitos diretamente ao público, a polifonia das narrativas e a já referida sobreposição temporal - acontecimentos ocorridos em tempos distintos, muitas vezes, coexistiram simultaneamente no enredo. Tudo isso a serviço da representação do incerto, falível e nem sempre confiável mundo da memória.

Agora, é preciso ressaltar, que a principal qualidade de Os Sapatos que Deixei pelo Caminho – a de buscar um diálogo temático e formal com pressupostos artísticos de seu tempo -, é, também, o seu “calcanhar de Aquiles”. Às vezes, a impressão era a de que os seus idealizadores e criadores seguiam os passos de uma cartilha e procuravam deixar claro que aprenderam as lições e que estavam completamente antenados com os pressupostos estéticos da chamada pós-modernidade... Ou do chamado teatro pós-dramático... Ou da estética da performatividade? Ou...?

Assim, a inovação – ou a busca por ela -, paradoxalmente, em alguns momentos engessou a encenação que às vezes pareceu truncada e grifada no intuito de se justificar. Situação que chegou a ofuscar algumas passagens mais simples e, não por acaso, contundentes. Apenas uma questão para que o grupo reflita, pois Os Sapatos de Deixei pelo Caminho evidencia a maturidade do Teatro do Kaos que, como perceptível alegria, dividiu com o público, em formato contemporâneo, uma bela e sensível história.

MOSTRA PARALELA

'A Condessa, a Cigana e o Amolador de Facas', do TEP/Unisanta

No dia 2 de setembro, às 19 horas, teve no Teatro Guarany a exibição do curta-metragem Rosinha Sinhá, seguida de Leitura Dramática 'A Condessa, a Cigana e o Amolador de Facas', ambas realizações do TEP/Unisanta, com direção de GIlson de Melo Barros. Na leitura dramática, o elenco era formado por Silvio Roupa, Lindalva Parolini, Barbara Brawn, Val Nascimento, Joely Nascimento, Beatriz Silva, Tales Ordakji, Cleber Fernando da Silva e Izabel Aparecida.

O texto conta a trajetória da nobre família de italianos Della Lata e suas ramificações com o Brasil, em especial com a cidade de Santos. Aqui a filha Simone,  deserdada por amasiar-se com um “mouro”, constitui família e tem como prole, entre três outros filhos mais velhos, a menina VILMA SIMONE, que desde cedo demonstrou enorme talento para a literatura. A narrativa tem início quando Vilma Simone, já em idade adulta, internada em um hospital psiquiátrico, acreditando ser Ivani Ribeiro, relata sua história e os emaranhados que a enveredaram pelos corredores das rádios santistas, lá pelos anos 30 do século passado.

'Barraco Número 9 - Projeto Quarto de Despejo', da Oficina do Imaginário

No dia 8 de setembro, às 19 horas, a Oficina do Imaginário apresentou o 'Barraco Número 9' no Centro Cultural Patrícia Galvão. Com direção e concepção de Paula D'Albuquerque, a peça tem no elenco Carolina Stahnke, Deia Oliveira, Juliana Damázio, Mayara Peres, Pri Calazans, Sarah Antunes e Thays Luz. O espetáculo é um Sarau de Samba e Samba inspirado livremente no livro "Quarto de Despejo: diário de uma favelada", de Maria Carolina de Jesus. Mistura a música popular brasileira e a descontração das rodas de samba com fragmentos do diário da escritora, que foi originalmente registrado em papéis que a catadora não descartava, além de retalhos de textos relacionados, como depoimentos, dissertações e letras de música, que compõem a tecitura de um teatro narrativo corporal.

'Ispinho e Fulô de Patativa', da Cia Teatral Carcarah Voador

A Cia Teatral Carcarah Voador encenou o espetáculo 'Ispinho e Fulô de Patativa', no dia 3 de setembro, às 18 horas, na Vila do Teatro. Com direção de Cícera Carmo, ela contracena texto de Patativa de Assaré com Vidah Santos. O espetáculo investiga cenicamente a poesia e a vivência de Antonio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, que através de sua obra poética descreve a vida do povo nordestino.  Com poesias de Patativa do Assaré, o espetáculo traz à reflexão a luta do homem sertanejo, o drama da seca e o êxodo da gente do sertão que parte em busca de uma vida melhor.

NARRATIVA

O espetáculo “O Ispinho e Fulô de Patativa, é uma adaptação livre da obra do poeta cearense Patativa do Assaré. Fazer uma colagem de poesias de Patativa é uma ideia antiga e ocorreu devido a identificação da direção com a poesia desse grande poeta. Através das pesquisas feitas pela Cia, verificou-se que suas obras são conhecidas na região nordeste e fora do país, sendo estudado na Universidade de Sorbonne na França (cadeira de Literatura Popular Universal), porém, pouco difundida na região Sudeste. Mediante este quadro, queríamos levar ao conhecimento do público do estado de São Paulo obras do poeta brasileiro Patativa do Assaré e a cultura nordestina.

DRAMATURGIA

O processo de pesquisa da obra do poeta Patativa do Assaré iniciou-se em 2007. A partir de então levamos ao público esquetes das poesias do Poeta como: Brasi de Cima Brasi de Baxo que fala das diferenças entre o nordestino rico e nordestino pobre, A derrota do Zé Côco um poema muito bem humorado que conta as peripécias de um nordestino valentão que migra para São Paulo na esperança de aprender os segredos das artes marciais e o emocionante poema “A Morte de Nanã”, que conta a história de uma mulher que perdeu sua única filha por inanição em consequência da seca de 1932. É um dos poemas mais tristes da obra do poeta Patativa do Assaré.

Em 2009 fomos ao Ceará em virtude da festa do centenário do poeta. Nesta ocasião a Cia Carcarah Voador apresentou a cena “A Morte de Nanã” na cidade de Assaré na casa onde Patativa nasceu e viveu com sua esposa e filhos, no Memorial que leva o seu nome e na missa solene em sua homenagem. Além de apresentarmos nas cidades de Nova Olinda, Sesc Crato e Juazeiro do Norte. Dois meses depois retornamos a Santos apresentando também em São Paulo e Campinas. Continuamos a pesquisa e somente em 2013 estreamos no MOTIM Teatral em Santos o espetáculo intitulado “Ispinho e Fulô de Patativa.

Desde então, ficamos em temporada em diversas cidades e eventos como: Virada Cultural em Santos (2014), FESTA (2013), Danado de Bom em Cubatão (2014), bem como diversos festivais e mostras teatrais. Ainda em 2013 realizamos uma turnê pelo Ceará com apresentações no Teatro Violeta Arraes na Fundação Grande em Nova Olinda, Aratama e em Assaré no Memorial Patativa do Assaré para os familiares do autor e comunidade local. Obtendo boa crítica. Em 2014 fomos contemplados com o FACULT Fundo de Assistência a Cultura da cidade de Santos, o qual a apresentação a ser realizada no FESTA faz parte dessa temporada.

MONTAGEM DO ESPETÁCULO

A montagem durou alguns anos, passando por diferentes direções, elenco e cenas até chegar ao formato que se encontra hoje. As interpretações têm influências da cultura popular e literatura de cordel. Como qualquer outra companhia independente, o processo teve seus altos e baixos, porém a vontade de realizar e divulgar a obra do poeta Patativa do Assaré superou todas as dificuldades.

CENOGRAFIA E FIGURINO

A cenografia de “Ispinho e Fulô de Patativa” é simples como a simplicidade do autor. Como pano de fundo, painéis que lembram as xilogravuras utilizadas para fazer as capas dos cordéis, de onde saem os personagens durante o espetáculo. Uma cadeira rústica, um rádio ABC, uma enxada, cabaça e outros objetos oriundos do sertão cearense compõem as cenas. Quanto aos figurinos, a costura é simples, roupas surradas, chapéu de palha, sandálias de couro, inspirada nas roupas usadas pelos sertanejos do interior nordestino.

REPERCUSSÃO

Aqui no estado de São Paulo, muitos imigrantes nordestinos se identificam e relembram a cultura de sua terra natal. Podemos destacar as apresentações realizadas para pessoas em situação de rua, o brilho nos olhos, o sorriso e os abraços no final do espetáculo falam por si só. Passamos por diferentes públicos e reações durante esses anos em cartaz, mas a experiência mais marcante foi na cidade de Assaré – CE, quando um dos filhos do poeta Patativa, Geraldo Gonçalves, nos abraçou emocionado e confidenciou que o seu pai estaria muito feliz com a realização do nosso trabalho e divulgação de sua obra.

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